Uma das participantes do nosso Clube de Leitura, na sessão do Porto, dizia que ficara surpreendida por encontrar o tema da gravidez antes do casamento no livro, a infeliz desgraça que ocorre a Eliza. Muitos temas que hoje encontramos amiúde nos livros eram na época de Jane Austen tabu e dificilmente eram tratados de forma aberta e clara. A própria gravidez de Charlotte Palmer é referida poucas vezes e de forma sempre discreta. Lady Middleton perante tal assunto chega mesmo a mudar o tema porque se sente incomodada. As coisas funcionavam assim...
Alguns livros que vou lendo parecem também estar cheios de fugas de amantes. A fuga era a única forma dos apaixonados poderem viver o seu amor. Teresa e Simão pensam em fugir, no Amor de Perdição, já que o seu amor era proibido pelos pais. Scarlett O'Hara, em E Tudo o VentoLevou também pensa nisso, embora seja apenas um plano seu e não seu e do seu amado Ashley Wilkes. Scarlett afirma que era o género de coisa que acontecia muitas vezes entre os seus amigos e conhecidos. Nos Maias, há diversas ideias de fuga: a Condessa de Gouvarinho que quer fugir com Carlos, este planeia fugir com Maria Eduarda e a única que foge realmente: Maria Monforte.
Em Orgulho e Preconceito, a fuga acontece protagonizada por Lydia Bennet. Sempre achei que este género de coisas serviam para dar algum atractivo aos livros e séries ou filmes mas que na vida real poucos ou nenhuns se atreveriam a fazer tal coisa.
Há umas semanas encontrei um livro, que ainda não li ou sequer comprei, mas que me pareceu bem interessante e que se enquadra neste tema da fuga. O livro chama-se Ana Kelly e a autora é Angela Leite; ao ler a sipnose percebi que estava perante um livro que contava uma fuga real. Mais interessante é que tudo se passou em Portugal, aquando da invasões francesas ou seja na altura em que Jane Austen viveu. Isto leva-me a pensar que possivelmente a fuga de Lydia pode muito bem ter sido inspirada em factos verídicos. Para os mais curiosos, aconselho a ler este post encontrado após uma pesquisa, é extenso mais muito bom, trata-se do relato da fuga feito por um descendente de Ana Kelly: Blogue
Se tiverem curiosidade sobre o livro aqui fica a capa e a sipnose, ambos tirados do site da Wook:
Na sequência das invasões napoleónicas, a Portugal chegam as tropas britânicas. Do contingente faz parte Waldron Kelly, um oficial irlandês. Quando se cruzam, Ana e Waldron apaixonam-se e perante a recusa da família em aceitar esse amor, a jovem fidalga foge, deixando para trás uma vida faustosa e uma família humilhada. Juntos partem para onde a guerra chama pelo dever do jovem. Corajosa, a esposa acompanha-o, sem nunca se arrepender da escolha, nem quando a miséria lhes bate à porta e mais uma vez é desprezada pela família, levando-a, em desespero, a escrever um pedido de ajuda à Rainha Vitória. Ana Kelly - Uma Saga de Amor e Coragem é uma biografia romanceada, mas genuína e intensa, de uma mulher que tudo enfrentou e suportou em nome do amor.
Lydia Bennet. É difícil encontrar, ou até imaginar, como teria sido o futuro da mais estouvada das irmãs Bennet. Ela que conseguiu casar com o seu príncipe encantado; ela que consegue ser tão cega ao ponto de não perceber o desagrado dele por se ver irremediavelmente preso a ela. Como esposa de um oficial que lhe preparou o futuro?
Sabemos que Fitzwilliam Darcy providenciou para que tivessem uma vida economicamente estável. No entanto, quanto tempo terá durado tão estranho enlace? Quanto tempo até George Wickham se perder por outra mulher ou por esquemas dúbios? E o mesmo se aplica para o lado oposto. Quanto tempo até Lydia perceber o desinteresse e desagrado do marido por ela e se lançar noutras aventuras tresloucadas?
Eu sei que estou a pensar como uma mulher do século XXI. Naquela época, as mulheres depois de casarem, 'morriam para o mundo' e, salvo raras excepções, ficavam com o marido até à morte. Então atrevo-me a dizer que Lydia terá sido uma dessas raras excepções. Uma estouvada com um pé no século XXI!
No entanto, e como sou uma rapariga romântica, uma Jane Bennet que vê sempre o melhor nas pessoas, gosto de imaginar que Lydia muda, que o seu amor por Wickham se torna mesmo genuíno e merecedor da admiração dele. E que também ele muda um pouco, que passa a ver Lydia com outros olhos e que chega mesmo a amá-la. Tudo pode acontecer. Se Jane Austen não nos presenteou com estas informações, a nossa mente austeniana não se importa de o fazer... livremente.
Julia Sawalha, Lydia na adaptação de 1995 da BBC, crédito da imagem: BBC
A fuga de Lydia poderia ter significado o desastre para o futuro das irmãs Bennet. Quem, no seu perfeito juízo, iria querer associar o seu nome a uma família que tinha uma filha que fugira?
A fuga de Maria Monforte, no livro os Maias de Eça de Queiroz, está na origem das várias tragédias da família Maia, primeiro o suicídio de Pedro e depois a relação amorosa e incestuosa dos seus filhos.
Eu sei que relacionar duas personagens de livros diferentes, escritos por pessoas diferentes e em alturas diferentes é algo difícil e muitos até estarão a pensar o que tem uma a ver com a outra, tirando o facto de terem fugido?
À primeira vista apenas a fuga, mas numa análise mais pormenorizada são bastante parecidas.
Lydia era a irmã mais rebelde e aquela que muitas vezes punha a família em evidência devido ao seu comportamento. Lydia adorava os seus namoricos com os oficiais. Elizabeth e Jane bem tentavam que ela visse que o seu comportamento era errado, mas Lydia fazia ouvidos de mercador. E como se isto não bastasse ainda fazia de Kitty a sua seguidora fiel.
Em Brighton, sem a vigilância dos pais e das irmãs mais velhas ela acaba por encontrar mais liberdade e fazer o impensável. Lydia mais tarde parece não entender que o fez era errado e podia ter prejudicado para sempre a sua família.
Simone Spoladore, Maria Monforte na série da TV Globo, crédito da imagem: Canal Viva
Já Maria Monforte foge depois de estar casada. O seu casamento com Pedro da Maia foi rejeitado pelo pai deste e levou a um corte de relações entre pai e filho. A rejeição de Maria provinha do facto do pai ser um antigo comerciante de escravos. No entanto julgo que o problema surgiu porque os Monforte pertenciam ao grupo dos novos ricos, que sempre se viram rejeitados por aqueles que tinham herdado o dinheiro e não enriquecido.
Maria vivia lendo livros românticos, não era muito diferente de Lydia pois era também excessiva, tinha comportamentos exuberantes e era ainda um tanto ou quanto excêntrica.
Qualquer mulher aflige-se pelo marido que feriu um homem desconhecido, embora o ferimento fosse ligeiro, mas ela sente-se mais perturbada pela ideia do belo italiano Tancredo a dormir tão perto de si. Como tantas outras mulheres também ela teria ideias românticas sobre o casamento que acabaram por não se realizar e talvez tenha visto em Tancredo essa possibilidade, daí ao adultério e posterior fuga foi um passo.
O resto já todos sabem Tancredo acaba morto num duelo alguns anos depois, o pai Monforte morre e pouco ou nada deixa para a filha, aí Maria sem grandes hipóteses de sobreviver lança-se numa existência de Dama das Camélias. Já antes da fuga existem no livro alusões a estas flores, Pedro oferece camélias a Maria nos tempos em que lhe faz a corte, Maria usa-as nos vestidos tal como A Dama das Camélias, tudo pistas para o que viria a seguir como Eça parece gostar de fazer.
É aqui que entra novamente Lydia e a minha ideia das parecenças e destinos semelhantes entre estas duas personagens.
No fim do livro Jane é muito clara sobre o futuro de Lydia, creio mesmo que é das personagens cujo fim é o mais claro. O casal Wickam continuou a gastar para além das suas possibilidades, procurando constantemente situações mais baratas. Darcy ajuda Wickam na carreira, mas nunca o recebe em Pemberley, Elizabeth e Jane ajudam o casal dando-lhes auxílio económico. Contudo o ponto mais importante é aquele em que diz que pouco depois do casamento o sentimento entre ambos deixa de existir, algo que não surpreende o leitor mais atento.
Lydia vira na fuga uma aventura, a excitação da qual tanto gostava, a possibilidade de dar uma boa risada e claro algum sentimento havia para se deixar ir. No fim termina casada com um homem sem carácter que nem sequer a amava. Eu ponho-me a pensar na Maria Monforte e na sua fuga. Se aparecesse a Lydia um Tancredo, uma nova promessa de aventura, excitação e amor, não seria ela capaz de fugir novamente? E por fim quando tudo caísse por terra e ela percebesse a gravidade da sua situação talvez entende-se que devia ter ouvido os outros.
Apesar de existirem em diferentes livros e tempos, estas duas mulheres são parecidas e os seus destinos não são mais semelhantes porque Maria não teve a sorte de encontrar em Tancredo um homem que fosse bom marido e não andasse em duelos e a perder dinheiro no jogo. Lydia teve a sorte de Darcy intervir pelo seu amor à irmã, porque se assim não fosse ela acabaria numa situação difícil, duvido que Wickam se não fosse aliciado pelo dinheiro casasse com ela. Lydia possivelmente acabaria numa existência de Dama das Camélias.
Lydia, a mais nova das irmãs Bennet, é aquela que casa primeiro. O seu escolhido é o galante Mr. Wickham que, para a maioria de nós, teve a sua quota de carinho no enredo da história até descobrirmos o quanto estávamos enganadas. Temo que Lydia só tenha feito tal descoberta, tarde de mais na sua vida.
Pergunto-me muitas vezes porque razão Jane Austen sacrifica tanto esta personagem. Não posso dizer que seja uma personagem com a qual crie empatia, não, longe disso! Jane Austen descreve-a como sendo completamente exuberante sendo um poço de excessos, superficialidade, inconsciência, irresponsabilidade e total falta de decoro. Mas ao mesmo tempo... Lydia revela-se extremamente ingénua a ponto de fugir com Wickham, escrevendo aquela nota. revelando uma completa inconsciência e uma estranha ingenuidade. Sem a intervenção de Darcy, ou seja, não havendo casamento entre Lydia e Wickham, ela seria provavelmente uma versão de Eliza de S&S, que mais tarde ou mais cedo seria abandonada por Wickham.
A situação da fuga de Lydia é facilmente comparável com aquela que acontece em Mansfield Park entre a recém casada Maria (Bertram) Rushworth e Mr. Henry Crawford, aliás, conhecendo esta obra são mais claras as consequências da situação do que em Orgulho e Preconceito (se bem que em Mansfield Park a situação é mais gravosa, uma vez que falamos de uma mulher casada).
Lydia é resgatada em nome do grande amor de Darcy por Elizabeth, pois de outra forma, Darcy jamais (?) poderia relacionar-se com Lizzie, uma vez que a má conduta da irmã se alargaria às restantes, como tão bem percebemos na obra.
Colocando-nos no tempo e no espaço da obra, a fuga de uma mulher com um homem sem estarem vinculados pelo matrimónio implicava uma total renegação pela dita “Sociedade”, não só a própria era afetada socialmente como também os seus parentes, pois era comum tais situações serem relatadas em jornais públicos (daí algumas das afirmações e pensamentos de Lizzie em relação a Mr. Darcy), gerando uma panóplia de boatos, maldicencias e fofoquices que corriam qualquer cidade e pequena vila em poucos dias.
Apesar de ser altamente mal visto na época, como talvez hoje em dia, temos apenas de ressalvar, que à data, não eram permitidos os divórcios, o casamento era perpétuo sem possibilidade de “desvinculação” – além disso, sabemos, e Jane Austen mostra isso muito bem, que grande parte dos casamentos era então feita por interesse social ou económico e não por afeição mútua entre os cônjuges (com sorte, isso veria depois para alguns). O recurso à “fuga” era muito comum para romper com a vida em comum, se bem que o estado civil permanecesse o mesmo – lembro-me de títulos como “The Tennant of Wildfell Hall” de Anne Bronte e a própria história da vida da escritora George Elliot.
Contudo, a “fuga” de Lydia nada tem que ver com estas causas, apenas foi o reflexo de muita inconsciência, muita irresponsabilidade e muita falta de disciplina por parte dos pais. Porque quereria Wickham fugir com Lydia? Duvido que tivesse qualquer intenção de casar com ela, os Bennet não tinham fortuna, logo isso excluia qualquer vantagem que pudesse existir; tal como Lizzie estou convencida que não lhe tinha afeição; li algures na imensidão da net que tudo se passou como plano de fuga não de Lydia, mas de Wickham, e ela foi apenas uma adição à fuga de Wickham que tinha já uma série de "credores" à perna.Quanto à felicidade deste casamento... isso é outra história e outro artigo!
Embora no filme (versão de 2007) o desfecho destas três personagens permaneça uma incógnita, mas com uma tendência altamente prometedora (é o próprio Mr.Bennet que o corrobora), na obra as irmãs aparecem com o destino traçado de forma mais regular.
A paixão de Lydia esfriou, mas ao que parece a efusividade (ou devo dizer “explosividade” manteve-se). Esta dedução deve-se ao facto dos pacientes Bingleys chegarem a desejar que ela e o marido, nas visitas efectuadas, se demorassem menos tempo em sua casa. Posso estar a ser maldosa, mas dada a leviandade que demonstrou ao longo do livro, acho que a Lydia era rapariga para dar uma “facadinha” no matrimónio, mais que não fosse flirtando com outros oficiais colegas do marido.
Mary fica em casa e é “obrigada” a frequentar a sociedade. Embora Jane refira que ela continua a fazer “deduções morais” de tudo e de todos, a mim parece-me que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por ser atraída pelos prazeres sociais, tornando-se numa frequentadora assídua de bailes e eventos afins.
Kitty parece ter sido a que mais beneficiou, dado que ficou sob protecção das suas irmãs mais velhas, o que lhe permitiu “fazer progressos”, não só em termos relacionais, mas sobretudo em termos de carácter.
Desfecho da história: penso que todas as manas Bennet acabaram por se casar, supõe-se que bem, dando uma grande alegria à sua mãe, também a Mr.Bennett, que viu o futuro das suas filhas assegurado do ponto de vista material e emocional.
Mrs.Bennet, a matriarca de uma prole de cinco raparigas jovens, persegue com obsessão o objectivo fulcral da sua vida: arranjar um bom casamento a cada uma das suas filhas. E se as duas mais velhas – Jane e Elisabeth – “arranjam” o seu para amoroso no início da história, para as outras três o percurso será ligeiramente diferente.
As duas mais velhas, embora com temperamento diferente, partilham dos mesmos gostos, de similar bom-senso, de uma educação impecável (não obstante da ousadia de respostas de Lizzy); as duas mais novas, também elas inseparáveis – Lydia e Kitty – estão nos antípodas, criando sempre um turbilhão à sua volta. Imaturas, insensatas, de riso demasiado fácil, exibicionistas, vivem para as paixões fúteis e para as fardas dos oficiais que se instalam nas imediações da sua residência. Como diz Mr.Bennet são “as duas raparigas mais tolas do país”. Em oposição e num cenário de isolamento, situa-se Mary, a irmã do meio, “que em consequência da sua fealdade, se aplicara na árdua aquisição de conhecimentos e dotes, na ânsia constante de os exibir”. É a irmã solitária que prefere a grandeza de uma paisagem aos actos dos homens.
Embora as mais velhas sejam protagonistas da história, não se pode deixar de ter em conta os desempenhos das manas mais novas, as quais pela sua diferença de temperamentos e de atitudes nos prendem à história.