Três após a morte da tia, Júlia escreveu um longo e-mail à irmã, já não eram e-mails relatando situações triviais com antigamente, mas sim tudo aquilo que acontecera desde o último e-mail e um ou outro comentário mais trivial, porque também de trivialidades vivem as pessoas.
Cecília e Henrique acharam melhor afastar-se do país e tinham encontrado na Inglaterra rural o refúgio perfeito. Compraram uma casa e tinham-na transformado num muito aprazível Bed&Breakfast, à boa maneira inglesa.
A D. Rata continuava a visitar Júlia, mas na falta da tia as suas visitas eram mais curtas e espaçadas, mas nunca deixava de as fazer porque não podia perder a oportunidade para saber o que se passava na casa.
Há cerca de dois meses, completamente falido, Luluzinho suicidara-se deixando para atrás uma vida indolente e muitas dividas para os familiares pagarem.
Eduardo ainda tinha tentado separar o irmão de Cecília, mas todos os planos tinham sido frustrados. Era agora presidente da junta de freguesia de Poiares e muito popular entre os seus eleitores. Sonhava com uma Camara, depois ser Primeiro-ministro e um dia Presidente da Republica, eram voos altos, mas ele era paciente e sabia jogar o jogo sujo da política.
Júlia tinha vencido no ano anterior um importante prémio literário e isso trouxera-lhe mais visibilidade, ainda não vivia da escrita, mas sabia que um dia isso iria acontecer. Num encontro literário conhecera João que era tudo aquilo que Luluzinho não era. Apesar das hesitações, dos medos, Júlia acabara por sucumbir e era agora uma mulher feliz. Podia ser mais se vivesse perto da irmã, doía-lhe que ela não estivesse mais perto. Felizmente a distância era mitigada por longos e-mails, mensagens no facebook, conversas através do Skype.
Júlia clicou no enviar do programa de e-mail e sentiu-se feliz por haver tanta tecnologia que aproximava quem estava longe. Até ao fim do dia Cecilia iria responder. Se fosse noutros tempos, escreveria uma carta e esta demoraria muitos dias a chegar a Cecilia e outros tantos a chegar a resposta.
Cecília releu a carta várias vezes até se certificar que lera correctamente. Filha da tia! Filha e não sobrinha. Era uma descoberta extraordinária. Aquilo explicava a condescendência que a tia tinha com ela, muito mais do que com Júlia. A diferença entre ambas!
Júlia bateu à porta do quarto da irmã para a informar que o almoço estava na mesa. Cecília deixou-a entrar e partilhou com ela a descoberta.
Júlia desatou num pranto que nada parecia acalmar, por fim Cecília também chorou. Júlia acabou por lhe contar tudo o que até ali ocultara. Ela sabia, ouvira uma conversa entre os pais e a tia Augusta. A pior parte ainda estava para vir, Júlia dissera a Luluzinho e este a vendera o segredo a Eduardo, contou dos telefonemas, contou como ela tinha sido ameaçada e o pior era que tinha dito coisas a Cecília para a dissuadir de voltar para Henrique e também fizer ao mesmo com ele.
- Cecilia, quando tu te separaste do Henrique ele procurou-me e ameçou contar-te. Por isso eu disse-te tanta vez que seria melhor não lutar por ele. Não eram tanto as ameças de morte que me preocupavam, mas sim que descobrisses a verdade.
- Como é que nunca me disseste nada.
- Eu descobri porque ouvi uma conversa, como já te disse.
- Quem era o meu pai?
- Depois de os nossos pais morrerem, eu falei com a tia, ela pediu que nunca te contasse, sabia que te irias sentir enganada. Eu sei que ela amava o teu pai, engravidou antes do casamento. Infelizmente, ele morreu num acidente. Sabes que há muitos anos era vergonhoso engravidar, fora do casamento. O avô não concebia que a filha fosse mãe solteira. Por isso o pai acedeu a criar-te como filha. Nunca planearam contar.
- Mas como contaste ao Luluzinho e não a mim?
- Eu comecei a perceber que ele era mau carácter, mas apaixonada como estava, não terminei o relacionamento e continuei com ele. Isso só me fez infeliz. E um dia bebi muito, queria mesmo esquecer e acabei por confessar a verdade. Era um peso demasiado grande para continuar a carregar sozinha e a bebida soltou-me. Ele e o Eduardo conhecem-se das mesas de jogo. Um dia o Luluzinho, depois da nossa separação soube que o Eduardo não queria que tu visses o Henrique e então contou-lhe a verdade a troco de dinheiro. Também me pediu a mim, mas tu sabes que eu nada tenho. Então Eduardo começou a dar-lhe dinheiro em troca do silêncio dele. Para te proteger da verdade acabei por aceitar todo este horror. Fiz coisas horríveis.
Após estas palavras Júlia caiu num pranto e Cecília apenas abraçou e tentou consola-la. Ela sentia-se traída e enganada por ter vivido uma mentira aqueles anos todos, mas os seus sentimentos não eram nada perante aquilo que Júlia sofrera e também Cecília chorou por tudo aquilo.
Na manhã seguinte ao enterro da Tia Augusta, a D. Rata apresentou-se em casa da amiga com o pretexto de vir buscar o livro de receitas da falecida. O livro era lendário entre a família e amigos pois apesar da pouca saúde a Tia Augusta cozinhava divinamente. Júlia e Cecília nunca mostraram talento especial para a culinária, sabiam cozinhar alguns pratos básicos e nenhum mais elaborado. O correcto seria dizer que elas desenrascam-se na cozinha.
Júlia estava ausente de casa e Cecília desconhecia esta herança de que falava a D. Rata. Assim, Cecília ligou à irmã que confirmou a vontade da tia e disse-lhe onde estava o livro. Ao tirá-lo da gaveta da mesa de cozinha, as folhas espalharam-se todas pelo chão. Cecília apanhou uma e verificou se estava numerada. Não estava. Teriam as receitas uma ordem? Verificou novamente a ver se via uma data e perante mais esta falha, enfureceu-se por a tia guardar dentro de uma capa um monte de folhas soltas em vez de ter um caderno.
Nesse momento, a D. Lúcia entrou na cozinha, nunca tinha tocado no livro mas sabia que a tia Augusta organizava as receitas por categorias, entradas, pratos de peixe, pratos de carne, sobremesas…
Cecília agarrou nas folhas todas e levou-as para o seu quarto e lá começou a organizar. Ela podia ter dado o livro conforme estava, mas sabia que a D. Rata não tardaria a fazer comentários sobre o assunto. Informou a D. Rata do sucedido e pediu-lhe que voltasse mais tarde, ela não ficou convencida, pois achou que aquilo era truque para não lhe darem o livro e ao sair planeou voltar ao início da tarde e falar com Júlia que sabia ser mais fácil de manipular.
Ao fim de alguns minutos, Cecília percebeu que apenas algumas folhas, aquelas que se tinham espalhado, estavam desalinhadas. Calculou que o resto estivesse no sítio. Mas mesmo assim verificou até à última folha e viu que esta era uma carta.
Cecília começou a ler:
Querido Zé,
A Cecília começou ontem a escola. Ainda me lembro do dia em que nasceu, era muito pequena e os médicos temiam que não sobrevivesse. Só a Deus devemos agradecer a graça por ela ter sobrevivido. A sua saúde é de ferro e isso alegra-me. Recordo muitas vezes os dias em que a peguei nos meus braços e a chamei de filha. Agora já não posso fazer isso. Entristece-me saber que ela pensa que eu sou apenas a tia, uma tia doente. Sei que me ama, mas o amor de mãe dá-o a outra.
Passados estes anos todos, sinto remorsos de não ter lutado pela minha menina e ter aceitado que ela seja criada como filha do meu irmão e não minha.
Nada parece mitigar este meu sofrimento, apenas estas cartas onde escrevo, cartas que nunca irás ler. Ainda ontem deixei uma no teu túmulo, pareço uma criança que escreve ao pai natal… Mas são estas cartas que me dão algum alento, o tema Cecília é proibido…
Cecília reconhecera a letra da tia, não estava datada e notava-se que ao escrever a tia tinha derramado algumas lágrimas. Era claramente uma carta não terminada.
Por um segundo, Cecília hesitou deveria ela contar-lhe sobre o telefonema? Ou tentar averiguar mais? Decidida a começar de novo, sem enganos ou mentiras, Cecília contou-lhe.
Foi com muito esforço que Henrique não desatou à gargalhada, não havia motivos para preocupações na sua opinião, todos os dias o telemóvel do seu colega de trabalho Paulo tocava por volta das seis, era a sua namorada. Possivelmente Júlia tinha um apaixonado.
Cecília não acreditava que fosse esse o caso da irmã, reparava como ela ficava tensa, nervosa. Por isso achava que não podia ser um telefonema de amor, mas não disse nada.
Júlia pensou em não atender, mas sabia que se não o fizesse o telemóvel iria voltar a tocar.
- Minha querida, pensava que não ia atender!
- Estava ocupada - foi a resposta seca de Júlia.
- Sabe, hoje vi algo que não gostei. Sabe do que falo?
- Calculo que não tenha gostado de ver o seu irmão agarrado à minha irmã?
-Exacto, a minha querida está a faltar ao combinado.
- E como espera que eu cumpra o combinado?
- Ora, Júlia, tanta imaginação nos livros que escreve e tão pouca na vida real?
Júlia suspirou e voltou a suspirar, antes de dizer:
- Afinal o que tem contra a minha irmã, tirando o facto de ela ser pobre?
-Somente isso, o meu irmão podia unir-se a uma mulher rica e não empobrecer ao lado de alguém não tem fortuna de família.
- Acho que desta vez não vai conseguir separá-los!
- Minha querida, sabe que se isso não acontecer quem sofre é a sua irmã. Já sabe, seja uma boa colaboradora e todos ficamos a ganhar. Se fosse uma mulher bonita sugeria que seduzisse o meu irmão, mas tendo tão poucos atractivos duvido que consiga. Júlia, devia ter cultivada beleza e não a mente, os homens não gostam de mulheres inteligentes!
Júlia estava tão habituada a ser insultada por Eduardo que estas palavras já não a magoavam. Todos os dias ele telefonava e certificava-se que ela cumpriria o combinado.
- Sabe, Júlia, tenho pena que você não seja como o Luluzinho. Ele soube jogar este jogo e você está sempre a hesitar.
- Claro, ela precisa do seu dinheiro para continuar a jogar e a pagar a mulheres que lhe aqueçam a cama à noite.
- Já que a Júlia não sabe o que fazer, eu arranjarei um plano, aguarde as minhas instruções.
Júlia lamentava ter um dia confiado em Luluzinho. Estava apaixonada e o amor deixou-a cega para tudo. Ele acabara por se revelar um canalha, e além disso vendera o segredo que ela lhe confiara a Eduardo. Ela era capaz de perdoar todos os defeitos e más acções dele, mas trair assim a sua confiança, isso nunca! E assim Júlia perdera um homem que nunca a amara e mergulhou numa profunda tristeza que ninguém à sua volta percebia.
Augusta Ferreira deixou o mundo dos vivos ao fim de sessenta e cinco anos de vida. Nunca tinha casado ou tido filhos, as suas sobrinhas Júlia e Cecília eram na falta destes, as parentes mais próximas.
Augusta estava numa idade em que os amigos e família começavam a rarear. Por isso o seu funeral foi pouco concorrido, alguns familiares todos já em segundo e terceiro grau de parentesco, a amiga que mantinha desde a sua juventude, D. Rata, Luluzinho e alguns vizinhos.
A Tia Augusta nunca gozara de boa saúde e com o passar dos anos foi definhando. Assim, as duas irmãs não esperavam que ela chegasse à idade do avó (pai da tia Augusta), que vivera até à bonita idade de 90 anos e sempre a respirar saúde… Mas mesmo assim sentiram e muito a morte da tia.
Júlia ficara abalada quando ao entrar no quarto da tia com o pequeno-almoço, como era hábito, se apercebeu que ela já não tinha vida. Tinha-se sentado pacificamente na beira da cama e chorado. Foi lentamente inundada por recordações felizes dos tempos em que tudo parecia mais fácil do que naquele momento. Chamou a D. Lúcia, a mulher-a-dias que naquele dia viera fazer as limpezas. A mulher, fiel servidora da casa há muitos anos, chorou num pranto contido a boa senhora que se fora tão jovem, pois quando temos a mesma idade de quem morre, eles para nós são também jovens.
Júlia, mais calma, chamou a 112 já não vinha socorrer ninguém, mas era necessário transportar o corpo para o hospital, chamar a polícia, vir o delegado de saúde que pronunciaria a Tia Augusta como morta. Júlia não tinha ideia do que aconteceria a seguir e não se lembrando de nada nem ninguém apenas se lembrou do número das emergências que marcou.
Uma hora mais tarde, Júlia telefonou à irmã. Cecília estava nesse momento com Henrique a passear junto ao Sena e a trocar com este juras da amor eterno, como se estivessem num filme romântico. Cecília veio então no primeiro voo para Portugal e Henrique nunca deixou de estar a seu lado. Henrique sentia a dualidade de sentimentos próprios de quem se sente o homem mais feliz da terra e o abalo pela morte de alguém. Ele mal conhecia a Tia Augusta, mas sofria pois sabia o quanto Cecília amava a tia.
Após o funeral, Júlia retirou-se para o seu quarto e Henrique e Cecília sentaram-se na sala de estar. Eram cinco horas e Cecília lembrando-se do que acontecia sempre aquela hora sentiu-se inquieta, quando o velho relógio parou as badaladas que anunciavam ouviu ou imaginou ouvir o telemóvel da irmã a tocar. Perguntou a Henrique se ele ouvira o telemóvel a tocar, porém ele não entendeu e pensado que ela estava a falar do telemóvel dele, assegurou-lhe que o tinha desligado.
- Não o teu o da minha irmã.
- Não conheço o toque dela – disse ele esboçando um leve sorriso.
Cecília não se tinha arrependido por ter alargado o seu tempo de permanência em Paris por mais um dia. A verdade era que precisava pensar, colocar as suas ideias em ordem e definir exactamente aquilo que faria para conseguir solucionar aquela estranha situação sem causar grandes males a alguém. Muito especialmente a Henrique.
Henrique. O seu Henrique. Ansiava pela hora de o reencontrar, de lhe pedir perdão pelas suas últimas atitudes e por lhe explicar as razões do seu comportamento nos últimos tempos. Estava muito optimista. A reunião do dia anterior tinha corrido muito bem e o tempo em Paris convidava ao passeio e à descontracção. Saíra do hotel logo pela manhã para poder caminhar pelos Campos Elísios, recordando com saudade e carinho todos os momentos que ali passara com ele. Na mão segurava um exemplar francês de "Persuasion" pour Jane Austen que adquirira, momentos atrás, num quiosque ali perto. Tencionava oferecê-lo à sua irmã logo que as duas conversassem e colocassem a sua relação no mesmo patamar em que a tinham deixado anos atrás. Júlia adorava o idioma francês, que fazia parte da sua área de estudos, e sabia que ela ambicionava um exemplar daqueles na língua do amor, como tantos lhe chamavam.
Cansada de caminhar, sentou-se num banco de jardim, um daqueles onde, no dia anterior, tinha estado, nos seus sonhos, a relembrar Henrique. Aconchegou a bolsa no seu colo e abriu o livro exactamente na página que desejava. Inconscientemente, sentiu que alguém se sentava ao seu lado mas não prestou sequer atençao. Deixou que a sua mente e o seu espírito divagassem livremente por entre a beleza daquelas palavras há tantos anos escritas.
"Je ne puis me taire plus longtemps. Il faut que je vous écrive. Vous me percez le cœur! Ne me dites pas qu’il est trop tard! Que ces précieux sentiments sont perdus pour toujours. Je m’offre à vous avec un cœur qui vous appartient encore plus que lorsque vous l’avez brisé il y a huit ans. Ne dites pas que l’homme oublie plus tôt que la femme, que son amour meurt plus vite. Je n’ai jamais aimé que vous. Je puis avoir été injuste, j’ai été faible et vindicatif, mais jamais inconstant. C’est pour vous seule que je suis venu à Bath, c’est à vous seule que je pense; ne l’avez-vous pas vu? N’auriez-vous pas compris mes désirs? Je n’aurais pas attendu depuis dix jours, si j’avais connu vos sentiments comme je crois que vous avez deviné les miens. Je puis à peine écrire. J’entends des mots qui m’accablent. Vous baissez la voix, mais j’entends les sons de cette voix qui sont perdus pour les autres. Trop bonne et trop parfaite créature! vous nous rendez justice, en vérité, en croyant les hommes capables de constance. Croyez à ce sentiment inaltérable chez
F. W.
Il faut que je parte, incertain de mon sort: mais je reviendrai ici, ou j’irai vous rejoindre. Un mot, un regard suffira pour me dire si je dois entrer ce soir ou jamais chez votre père".
Era espantoso como, fosse em que língua fosse, aquelas palavras eram sempre capazes de a tocar e de a fazer sentir-se leve e tranquila. E faziam-na lembrar-se dele; de como quase deixara fugir um grande amor como o de Anne e Frederick, o tipo de amor que tanto desejara. Isso fê-la pensar em Henrique com saudade, tanta saudade que lhe pareceu sentir o seu cheiro perto dela. Discreta e silenciosamente aspirou aquele aroma que julgava fruto da sua imaginação. No entanto, parecia-lhe tão real, tão presente no ar, à sua volta, que se sentiu tonta.
- Não me digas que é demasiado tarde, que sentimentos tão preciosos morreram para sempre! - disse a voz ao seu lado, em português, citando algumas das palavras que estivera a ler. Uma voz que lhe era demasiado familiar e demasiado querida. Uma voz que lhe fazia falta.
Rodou devagar a sua atenção para a voz e, mesmo antes de prender os seus olhos nos dele, soube que era Henrique. Não se moveu. Ele sorria-lhe, um pouco hesitante. Fechou o livro no seu colo e sorriu-lhe de volta, sem deixar de o olhar, como se temesse que ele fugisse ou que fosse novamente uma partida da sua mente.
- Henrique - murmurou - És mesmo tu? Que fazes aqui, em Paris?
Ele continuou a sorrir-lhe, mais tranquilo, pois sentiu-lhe a voz afável e calma. Ainda se recordava da sua frieza e distância quando a vira a última vez, em Poiares. Todavia, algo mudara nela. Reconhecia naquela mulher, ali sentada ao seu lado, num banco de jardim, nos Campos Elísios, em Paris, a mesma mulher que amava desde há muito tempo. Deixara de a reconhecer naqueles últimos tempos, contudo ela voltara. Era a sua Cecília novamente. O seu sorriso dizia-lhe que sim.
- Medito - disse meio a brincar - E tu?
- Vim em trabalho - disse apressadamente - Quer dizer, ontem estive em trabalho. Hoje, penso que... medito - disse com um sorriso suave e cúmplice.
Ele tomou-lhe as mãos por sobre o livro depositado no seu colo.
- Diz-me que é aqui, longe de tudo e de todos, que me vais explicar o que está a acontecer - pediu ele, com os olhos quase suplicantes - A minha vida tem sido um inferno sem ti, estes últimos tempos. Não sabes o que me tem doído estar sem a mulher que amo sem ao menos saber porque fui rejeitado.
Cecília pareceu pensar nas palavras dele. Depois levantou uma mão e acariciou-lhe o rosto, ainda para se certificar de que ele era real.
- Tens razão - disse - como posso eu ter rejeitado a minha alma, o meu coração,... a minha vida? - baixou o rosto, tomou-lhe uma das mãos e levou-a aos seus lábios como que para pedir o seu perdão.
Ele sorriu enternecido e com a outra mão afagou-lhe o cabelo, forçando suavemente o seu rosto para cima, para olhar para ele.
- Há uns tempos atrás, num destes mesmos bancos, nesta mesma cidade, pedi-te para nunca me deixares - relembrou-lhe - E não vou permitir que o faças porque sei que me amas tanto quanto eu te amo a ti. Não sei o que se passou, - continuou - mas deve ter sido algo grave, e penso que tem a ver com o meu irmão Eduardo. E, talvez não agora, talvez não hoje, mas eu quero que me contes tudo. E acredita que vamos resolver isso de forma a que nenhum de nós saía magoado... ou separado - tomou o rosto dela entre as suas mãos - Nunca mais me quero separar de ti. Enfeitiçaste-me a alma e o corpo.
Cecília deixou finalmente a cabeça repousar no ombro dele e deixou-se abraçar. Henrique era agora real e por mais que ela julgasse estar a sonhar, ele estava ali, era real e não ia desaparecer num qualquer sonho. Apertou-o contra si e soube que nunca mais se iriam separar.
No entanto, no seu subconsciente, algo insistia em angustiá-la. Eduardo e as suas exigências macabras; Bárbara e a sua petulância; Júlia e a sua relação com Eduardo. E ainda aquele estranho e insistente telefonema que a irmã continuava a receber diariamente às 17horas. Ainda havia muito a resolver. E seria difícil. Mas agora estava com Henrique e juntos saberiam combater e lidar com o que viesse a acontecer.
Eram quase dez horas da noite e Júlia ajudava a Tia Augusta a deitar-se quando um barulho fora da casa lhes chamou a atenção. Era o motor de um carro que cessou o seu rufar logo que elas apuraram o ouvido.
- Quem será a esta hora da noite? - questionou a Tia Augusta na sua voz débil e arrastada, já coberta com o seu cobertor favorito que cheirava a lavanda e a lavado.
- Vou ver, Tia Augusta - disse Júlia, apagando a luz do candeeiro - Durma que deve estar cansada. ("Da Dona Rata", pensou divertida).
- Tem cuidado - balbuciou a velha senhora antes de se aconchegar para dormir - A esta hora pode ser qualquer um.
Júlia sorriu enquanto encostava a porta do quarto da tia, sabendo que esta provavelmente já dormia. A medicação punha-a logo no conforto do sono.
Desceu a escadaria, algo apreensiva, não porque tivesse medo mas porque pensou reconhecer o barulho do motor do carro; caro, topo de gama. Só podia ser ele.
Não se enganou. Quando abriu ligeiramente a porta da frente para descobrir de quem era a sombra que aguardava lá fora, ele espreitou e sorriu forçadamente, as sobrancelhas levantadas como que para surpreendê-la.
- Boa noite, minha querida Júlia - disse com voz falsamente melosa - Vim terminar a nossa conversa. Ontem não tivemos oportunidade de falar dado que estava com visitas.
Ela abriu mais a porta sem, no entanto, lhe dar espaço para entrar.
- Não vejo que mais tenhamos para falar - argumentou defensiva - Além disso, isto não são horas para visitas desse género.
- Desse género!?... - Surpreendeu-se Eduardo - Ora, cara Júlia, quem a ouvir, vai pensar outras coisas bem mais maliciosas acerca de nós os dois. Vá lá, seja simpática e deixe-me entrar.
Ela afastou-se hesitante e deixou-o finalmente entrar. Não tinha outra solução. Sabia que não tinha. Aquele homem era maquiavélico e perigoso e ela não queria mais problemas com ele; tão pouco ver o seu lado zangado ou violento. E, tendo em conta que se encontrava praticamente sozinha naquele imenso casarão, não teve outra alternativa.
- Obrigado - agradeceu ele, dirigindo-se imediatamente para a sala de estar. Ali chegado, recostou-se de imediato na melhor poltrona que encontrou, cruzou as pernas e preparou-se para acender um cigarro.
- Agradecia-lhe que não fumasse dentro desta casa - disse Júlia tentando soar altiva.
Eduardo parou os seus movimentos, sorriu sarcasticamente e guardou a cigarreira novamente no bolso do casaco de corte elegante e caro.
- Muito bem - disse calmamente - Pensou na minha proposta?
Júlia olhou-o. Já o conhecia como sendo um homem que ia directo ao assunto, que não se refugiava em subterfúgios nem em divagações para chegar ao que pretendia.
- Deixou-me pouco para pensar...
Ele riu.
- Lamento, mas já não disponho de muito tempo. E não gosto de florear as questões. As coisas são como são.
- Ou como o senhor as quer...
Ele riu novamente.
- Exacto. Como eu as quero. E como eu as vou ter... - acrescentou, desta vez sério e com os olhos levemente ameaçadores.
Quando Eduardo foi embora, Júlia subiu ao seu quarto e, mesmo sem se despir, atirou-se para a sua cama e, pela primeira vez em dias, expressou livremente a sua frustração e a sua impotência perante a situação. Chorou até que o sono finalmente lhe roubou o desespero e sabendo que não tinha como fugir daquela situação.