Leitura Comparada de Sense and Sensibility de Jane Austen nas traduções:
“Sensibilidade e Bom Senso” (Maria Luísa Ferreira da Costa) e “Razão e Sentimento” (Ivo Barroso)
1 | Uma mesma língua: significantes diferentes, significados iguais
Seleccionei dois exemplos em conformidade com esta ideia. No primeiro exemplo, constatamos que as opções das duas traduções estão adequadas e revelam o uso de cada país.
"Edward made no answer; but when she had turned away her head, gave her a look so serious, so earnest, so uncheerful, as seemed to say, that he might hereafter wish the distance between the parsonage and the mansion-house much greater." | Sense and Sensibility, Chapter 40, page 369
“Edward não respondeu; mas quando ela voltou a cabeça, lançou-lhe um olhar tão sério, tão fervoroso, tão triste, que parecia dizer que desejaria que a distância entre aparóquia e a mansão fosse muito maior,” | Sensibilidade e Bom Senso, Cap. 40, pg 215
“Edward não respondeu; mas quando ela voltou a cabeça, ele lançou-lhe um olhar tão sério, tão fervoroso, tão triste, que parecia desejar que a distância entre o padroado e a mansão fosse muito maior.” | Razão e Sentimento, Cap. 40, pg 196
Já neste segundo exemplo a seguir, temos duas situações:
“I am monstrous glad of it. Good gracious! I have had such a time of it! I never saw Lucy in such a rage in my life. She vowed at first she would never trim me up a new bonnet, nor do any thing else for me again, so long as she lived;(…)” | Sense and Sensibility, Chapter 38, page 344
“Fico muitíssimo contente com isso. Santo Deus! Passei uns tempos! Nunca na minha vida vi Lucy com tal fúria. Declarou solenemente a princípio que nunca me cortaria o meu chapéu novo e nunca mais faria nada por mim enquanto vivesse (…).” | Sensibilidade e Bom Senso, Cap. 38, pg 201
“Estou terrivelmente satisfeita com isso. Santo Deus! Passei maus pedaços! Nunca vi Lucy tão furiosa em minha vida. Ela jurou a princípio que nunca mais adornaria os meus chapéus nem faria mais nada para mim enquanto vivesse; (…).” | Razão e Sentimento, Cap. 38, pg 190
A primeira situação deriva da expressão "I have had such a time of it!". Confesso que nunca ouvi a expressão "Passei uns tempos!"; embora admita que possa existir, surge como uma tradução literal. Na tradução brasileira, "passei maus pedaços!" também não me soa como uma frase comum. É mais correntemente utilizada a expressão "passei um mau bocado".
A segunda parte da frase chamou-me mais a atenção: "she would never trim me up a new bonnet". A tradução portuguesa continuou numa linha literal enquanto a versão brasileira incindiu mais sobre o significado da expressão. Parece-me que a opção de Ivo Barroso está melhor conseguida e transmitiu a ideia da frase.
2 | Opções e Dúvidas
“Lucy does not want sense, and that is the foundation on which every thing good may be built.” | Sense and Sensibility, Chapter 37, page 333
“Lucy não tem falta de senso, e isto é a base na qual todas as qualidades se devem apoiar… “ | Sensibilidade e Bom Senso, Cap. 37, pg 194
“Lucy não é destituída de bom senso, e isso é fundamental para a construção de alguma coisa permanente...” | Razão e Sentimento, Cap. 37, pg 183
Tenho de admitir que sou um pouco exigente no uso dos termos "senso" e "bom senso". Não sendo distintas, também não são totalmente semelhantes. Porque "Senso" é a capacidade de sentir, pensar e perceber; mas "Bom senso" implica um uso equilibrado "nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta". O bom senso apresenta-se como algo activo, que se concretiza de facto e que tem uma forte carga positiva. E Lucy Steele não é propriamente uma figura que seja conhecida pelo seu bom senso. Encontrei-me numa situação em que se tornou necessária a pesquisa da própria palavra em inglês. A palavra "Sense" é abrangente e implica "senso, sentido, sensação, acepção, percepção, consciência, juízo, compreensão, sensibilidade, inteligência, apreensão". Será que Jane Austen queria significar que Lucy Steele tinha "sense" no sentido da percepção e da compreensão?
Por outro lado, os meus pensamentos ficam mais confusos quando dou conta de que o que Jane Austen escreveu foi que Lucy Steele "does not want" que significa "não quer", ao invés do "não tem falta" (versão portuguesa) ou do "não é destituída".
Já na segunda parte da frase quando Jane Austen escreve "foundation" e "may be built" está a recorrer a um sentido figurativo em que usa a imagem de que a fundação sobre a qual uma casa é construída é o garante da solidez e da longevidade da mesma. Neste caso, a tradução brasileira transmite melhor a ideia expressa.
"(…) and how forlorn we shall be, when I come back!—Lord! we shall sit and gape at one another as dull as two cats." | Sense and Sensibility, Chapter 39, page 356
“Como nos sentiremos tristes, quando eu voltar para casa!... Meu Deus! Sentar-nos-emos e bocejaremos, olhando um para o outro, tão aborrecidos como dois patos ” | Sensibilidade e Bom Senso, Cap. 39, pg 208
“Como ficaremos desolados, quando eu voltar! Meu Deus! Vamos sentar-nos aqui e bocejar como dois gatos melancólicos. ” | Razão e Sentimento, Cap. 39, pg 196
Mrs. Jennings, personagem tão querida ao meu coração, proporciona-nos momentos de grande hilaridade. A frase acima transcrita é um comentário, meio em forma de desgosto, que ela dirige ao Cor. Brandon. Sempre que leio as suas exclamações, mesmo num momento de uma certa tristeza para ela, não consigo deixar de esboçar um sorriso.
Quando li os dois textos e os comparei com a versão original qual não foi o meu espanto de ver que na versão portuguesa "as dull as two cats" foi traduzido para "tão aborrecidos como dois patos".
Não encontrei explicação possível para isto.
“In such moments of precious, invaluable misery, she rejoiced in tears of agony to be at Cleveland;” | Sense and Sensibility, Chapter 42, page 385
“Em tais momentos de desgosto precioso e incalculável, confortavam-na as lágrimas de agonia que vertia por estar em Cleveland (…)" | Sensibilidade e Bom Senso, Cap. 42, pg 224
“Tais momentos preciosos e inestimáveis confortavam-na das lágrimas da angústia por estar em Cleveland (… )” | Razão e Sentimento, Cap. 42, pg 212
Esta é uma das minhas frases preferidas em "Sense and Sensibility". Insere-se num momento marcante do livro. Marianne parte de Londres com o coração destroçado e, no regresso a casa, terá de fazer uma estadia em Cleveland, residência dos Palmer. Cleveland é próxima de Combe Magna, propriedade de Willoughby. Esta coincidência cria toda uma amálgama de emoções em Marianne.
Esta frase ( e todo o texto deste capítulo 42) no seu original tem uma carga emocional tão grande e tão profunda que é comovente. Podemos sentir toda a paixão com a qual Marianne vive os seus sentimentos, seja felicidade seja infelicidade.
O termo "rejoice" (usada pela autora nesta frase) ultrapassa a comum alegria. "Rejoice" é júbilo, é alegria em êxtase. Jane Austen diz que ela "rejubilou em lágrimas de agonia". A intensidade das suas emoções são transmitidas por contradição: ela estava destroçada e deprimida, mas a proximidade de Combe Magna e, consequentemente, a lembrança de Willoughby, gerou uma diferente forma de alegria. As frases de ambas traduções destacam a força e a intensidade do momento?
Para além disso, eu não compreendi porque os tradutores optaram por afirmar que as lágrimas "confortaram". Seria "conforto" no sentido de "consolo"? Um "consolo" no sentido de prémio de consolação?
Admitindo que a estranha alegria e a sensação de liberdade que Marianne estava a sentir, que Jane Austen descreve, fossem uma forma de consolação; ainda assim, há discrepância entre ambas frases. Na versão portuguesa, o conforto era proveniente "das lágrimas de agonia"; enquanto que na tradução brasileira, o conforto resultava de "tais momentos preciosos e inestimáveis".
Estreito mais o olhar e vejo que, em Sensibilidade e Bom Senso, as lágrimas são de "agonia"; enquanto que, em Razão e Sentimento, as lágrimas são de "angústia". Ambos substantivos têm significados aproximados, mas é interessante ver a diferença:
Agonia:s. f. - 1. Última luta contra a morte; 2. [Figurado] Ânsia, aflição; 3. Desfecho próximo (precedido de grande perturbação).
Angústia: (latim angustia, -ae, estreiteza, contrariedade, aflição) - s. f. - 1. Estreiteza;2. Grande aflição acompanhada de opressão e tristeza.
Inclino-me para a utilização do substântivo "agonia" e, por isso, para a opção feita pela tradução portuguesa.
Agonia ou angústia, qual parece ser a mais adequada?
“Marianne gave a violent start, fixed her eyes upon Elinor, saw her turning pale, and fell back in her chair in hysterics.” | Sense and Sensibility, Chapter 47, page 450
“Marianne endireitou-se abruptamente, fixou os seus olhos em Elinor, viu-a tornar-se pálida e caiu da sua cadeira, histérica.” | Sensibilidade e Bom Senso, Cap. 47, pg 263
“Marianne estremeceu violentamente. Voltando os olhos para Elinor, viu que ela empalidecia, e se reclinava na cadeira como se estivesse se sentindo mal. ” | Razão e Sentimento, Cap. 47, pg 248
A questão, nesta frase, é muito simples: quem é que se sentou na cadeira, numa crise nervosa, Marianne ou Elinor? Diria que Maria Luísa Ferreira da Costa traduziu a ideia de forma adequada, porque parece-me que é Marianne quem tem um episódio nervoso e é ela quem volta a a endireitar-se na cadeira . Embora, dizer "histérica" parece-me ser um termo demasiado forte; e, "sentindo mal" parece-me demasiado leve para o episódio em causa.
3. Uma espécie de colete de flanela.
Janeites e caríssimos leitores/as, não resisto terminar a minha selecção de trechos desta leitura comparada sem referir o meu querido Cor. Brandon e o seu famoso colete de flanela. A dita peça de vestuário associada, por Marianne, à velhice. Quer me parecer que este seria mais um exagero pretensioso de uma adolescente inexperiente. Contudo, ele existiu no contexto da história.
“a man who had suffered no less than herself under the event of a former attachment, whom, two years before, she had considered too old to be married,—and who still sought the constitutional safeguard of a flannel waistcoat!” | Sense and Sensibility, Chapter 50, page 484
“E esse outro era um homem que não sofrera menos que ela por causa de uma afeição anterior , que dois anos antes ela considerara velho de mais para casar… e que ainda procurava a tradicional protecção num colete de flanela.” | Sensibilidade e Bom Senso, Cap. 50, pg 283
“(…) e este outro era um homem que havia sofrido não menos que ela por causa de uma afeição anterior, e a quem, dois anos antes, ela havia considerado velho demais para casar-se...” | Razão e Sentimento, Cap. 50, pg 266
O que não consigo perceber é porque o colete de flanela foi retirado, em Razão e Sentimento, neste final. Terá sido uma forma de o assumir como um símbolo/sinónimo de velhice e somente reforçar o factor idade, suprimindo o símbolo em si? Faz-me lembrar o episódio do duelo, também suprimido, só que na versão portuguesa. Pequenos detalhes e episódios fazem-nos perceber melhor a história, os sentimentos, pensamentos e personalidades dos personagens. Eles fazem a diferença.
Comparar as duas traduções fez-me ver que a partilha de uma mesma língua não invalida um uso e uma significação diversificada e distinta em ambos países. Do meu ponto de vista, isto constitui uma grande riqueza. Temos particularidades, tanto no Brasil como em Portugal, e isto evidencia-se na tradução. O meu amor por Jane Austen saiu reforçado e, porque não dizê-lo, por "Sensibilidade e Bom Senso".
Ter vivido, com a Raquel Sallaberry Brião, esta parceria e desafio foi uma honra e uma grande alegria. Quero manifestar aqui a gratidão pelo convite e pela confiança que ela me dedicou.
Os mais atentos terão notado que no Desafio do Bicentenário da Leitura Comparada de "Sense and Sensibility" de Jane Austen nas traduções: “Sensibilidade e Bom Senso” (Maria Luísa Ferreira da Costa) e “Razão e Sentimento” (Ivo Barroso) - feita pela Raquel Sallaberry e por mim - ainda falta uma terceira parte para a sua conclusão.
A Leitura Comparada passou por uma pausa. A vida está submetida a um imperativo de imprevisibilidade e levou-nos a caminhar por outras paragens. Durante algum tempo, nós duas - cada uma no seu respectivo lado do oceano - envolvemo-nos em outras actividades e ocupações; mas, agora retomamos o rumo.
A nossa querida Raquel Salaberry, do Jane Austen em Português, abraçou um projecto que fará a felicidade de todas a Janeites: uma edição de luxo, de capa dura, ilustrada de Razão e Sentimento, tradução de Ivo Barroso (Editora Nova Fronteira). A própria Raquel escreve no livro "a história da composição do livro" - refere o poeta e tradutor Ivo Barroso no seu blogue.
Diante da importância deste lançamento, decidimos esperar pela sua concretização para publicarmos a terceira parte da Leitura Comparada. Temos esperança que seja em breve; por isso, estejam atentos!
Deixo-vos a imagem da capa do livro. Linda e delicada.
Leitura Comparada de Sense and Sensibility de Jane Austen nas traduções:
“Sensibilidade e Bom Senso” (Maria Luísa Ferreira da Costa) e “Razão e Sentimento” (Ivo Barroso)
S&BS| Viu - depois de um curto silêncio, continuou - mais alguma vez Mr. Willoughby desde que deixou Barton?
- Sim, vi - replicou gravemente - uma vez. Um encontro era inevitável.
Elinor, espantada pelos seus modos, olho-o ansiosamente, dizendo:
- O quê? Encontrou-o para...
- Não podia encontrá-lo para outro fim. Eliza confessou-me com muita relutância o nome do seu amante; e quando ele regressou para a cidade, o que aconteceu quinze dias depois da minha vinda, marcámos um encontro, para ele se defender e para eu provar a sua conduta. Separámo-nos sem ressentimentos e portanto o encontro nunca se espalhou.
Elinor suspirou e duvidou da necessidade daquilo, mas ele era um homem e um soldado, e não se atreveu a censurá-lo.
Capítulo 31, pg. 157
R&S| O senhor voltou a ver - perguntou ela a Brandon, após um breve silêncio - o sr. Willoughby, depois que deixou Barton?
- Voltei - replicou o Coronel gravemente - Uma única vez. Um encontro era inevitável.
Elinor, espantada pelos seus modos, olhou para ele ansiosa, perguntando:
- Como? Bateram-se em duelo?
- Não havia outra solução. Eliza, embora com relutância, confessou-me o nome de seu amante; e, quando ele regressou a Londres, uns quinze dias depois de minha chegada, marcamos um encontro, ele para defender sua conduta, eu para castigá-la. Nenhum de nós saiu ferido, e o duelo nunca chegou a ter repercussão.
Elinor suspirou e duvidou da necessidade daquilo; mas presumiu que a um homem e soldado nada devia censurar.
Capítulo 31, Pg. 149
Para mim foi uma grande surpresa descobrir que existiu um duelo em Sense and Sensibility. Terei sido a única a ficar espantada com tal informação? Eu li Sensibilidade e Bom Senso nos anos 90 e só quando eu assisti - uma década depois - a série da BBC "Sensibilidade e Bom Senso | 2008" é que dei-me conta desta questão do duelo. Alías, quando eu ví a série pensei que teria sido uma liberdade de argumento e tive curiosidade de pesquisar na internet sobre isto. O meu espanto foi grande.
Na tradução portuguesa, não é identificado o encontro que Coronel Brandon relata como um duelo. Confesso, nunca chegaria a esta conclusão. A ideia que eu fiquei é que teria sido um encontro em que falaram, quando muito, discutiram. Em Razão e Sentimento, vem traduzido como tendo acontecido um duelo. Devo dizer que, eu gosto da opção da versão brasileira. Ao ser identificado o "meeting" como um duelo, a imagem do Coronel Brandon ganha outra nuance. Acho que confere-lhe um ar mais participativo e, porque não dizer, másculo. Imaginá-lo a defender a honra de Eliza, colocando Willoughby no seu devido lugar (que é o de canalha) torna-o ainda mais elevado do que ele é.
Devemos admitir que a tradução brasileira foi ousada porque, no original, Jane Austen não utiliza o termo "duel". Naquele tempo os duelos seriam um tipo de ajuste de contas ilegal. Aliás, bater-se em duelo, fazia com que muitos homens partissem do país com medo das represálias judiciais. Então, Jane Austen toca ao de leve na questão, deixa subentendido. Através da reacção de Elinor, de entender que seria algo que um homem faria, mas que ela particularmente não aprovaria, demonstra que esta prática além de ser ilegal seria também socialmente pouco aprovada. E os duelos não durariam para além do tempo da Regência.
Esta questão ultrapassa o aspecto das traduções, mas não vos impressiona que ambos tenham saído ilesos do duelo. Como, sendo o coronel um homem de armas e experiente, não tenha feito dano a Willoughby? Terá sido um acto de misericórdia do Coronel Brandon que, após ter vencido Willoughby, preferiu poupar-lhe a vida? Eu gosto de pensar nesta possibilidade: Coronel Brandon - um verdadeiro cavalheiro.
Leitura Comparada de Sense and Sensibility de Jane Austen nas traduções:
“Sensibilidade e Bom Senso” (Maria Luísa Ferreira da Costa) e “Razão e Sentimento” (Ivo Barroso)
PT | Elinor julgou ter distinguido uma grande W no endereço; logo que o completou, Marianne, tocando a campainha, pediu ao criado que a atendeu para enviar aquela carta pelo correio, com um selo de dois pennys… Isto clarificou imediatamente o assunto.
PG. 119
BR | Elinor julgou ter distinguido um grande W no envelope. Mal acabou de escrever, Marianne tocou a campainha, pedindo ao criado que veio atender que a levasse imediatamente ao correio. Isso definiu perfeitamente o assunto.
Pg. 113
Não imaginam o quanto este trecho fez-me pensar. Nesta parte, em que Marianne escreve e envia a carta a Willoughby logo que chega a Londres, alimentei algumas dúvidas. Quando, há um mês atrás, eu escrevi este post inserido no tema "A importância das cartas na obra de Jane Austen", referi que as cartas naquele tempo eram escritas de um lado do papel, dobradas de forma a ganhar o formato envelope e seriam pagas pelo destinatário. Então, esta passagem levanta a dúvida: para quê pagar o selo? Em Sensibilidade e Bom Senso refere "um selo de dois pennys" e Razão e Sentimento apenas diz "que a levasse imediatamente ao correio". Qual seria a correcta? Afinal, a carta seria paga ou não?
Enviar e receber cartas seria quase um privilégio para aqueles que tinham posses e para os comerciantes porque implicava custos. O valor a cobrar pelo envio de uma carta baseava-se no peso e na distância a percorrer pela mesma. Quando o envio era dentro da cidade de Londres, o remetente teria de ter alguém para levar a carta ou pagar a alguém para o fazer. Isto ocasionava que algumas cartas nunca chegassem ao destino já que se podia contar com algum imprevisto. Em 1680, William Dockwra e o seu sócio Robert Murray inventaram um sistema que simplificaria todo este processo e diminuíria o custo. Na realidade, era uma necessidade já que houve um fomento acentuado da actividade comercial na cidade de Londres, acompanhado de um crescimento populacional. O fluxo de envio de cartas e o serviço que acompanhasse este processo era desigual. A ideia destes dois senhores foi o de criar um serviço de transporte de correspondência pré-pago dentro da cidade de Londres pelo valor de um penny: "The Penny Post". Foi um grande sucesso que reverteu em lucro. De tal maneira, que chamou a atenção do Duque de York (irmão do Rei) que reclamou o facto do sistema de Dockwra ameaçar o monopólio estatal. O resultado foi o Dockwra perder o seu negócio rentável e o seu sistema foi incorporado no "General Post Office". Nesta transposição de posse, o sistema que era unicamente pré-pago, passou a ter as duas opções à escolha: poderia ser pago tanto pelo destinatário quanto pelo remetente. O "selo" identificaria o caso específico. A partir de 1801, o valor de envio aumentou para dois pennys. O serviço "Two-penny post" era efectuado apenas dentro da cidade de Londres.
Pesquisar e compreender a evolução do sistema postal de Londres auxiliou-me a compreender o significado do trecho de Sense and Sensibility e as traduções feitas. Na realidade, nenhuma das duas estão incorrectas: a primeira, fez uma tradução literal; a segunda fez uma simplificação (two-penny post seria o tipo de serviço de "correio"). Mas, ao mesmo tempo, nenhumas das duas consegue traduzir a ideia que Jane Austen quer revelar.
Se repararmos, o que está em destaque é o facto de Elinor não ter a certeza se a irmã estaria a enviar uma carta para Willoughby. Somente quando ouve a indicação que Marianne fornece ao criado para enviar a carta pelo "Two-Penny Post", surge a certeza de que é para Willouhgby ("This decide the matter at once"). O valor do envio revela que seria para alguém de Londres. Marianne - para além do seu irmão e cunhada - só conheceria Willoughby a residir lá.
Este é um entendimento que surge realmente se houver um prévio conhecimento do sistema postal; de outra forma, o significado fica meio vago nas duas traduções. Então, Sensibilidade e Bom Senso e Razão e Sentimento não coincidem na tradução de "two-penny post" mas acabam por serem similares num aspecto: retiram a atenção da real questão - a dúvida e a confirmação quanto ao destinatário - e concentram-na para o acto em si de envio da carta.
Leitura Comparada de Sense and Sensibility de Jane Austen nas traduções:
“Sensibilidade e Bom Senso” (Maria Luísa Ferreira da Costa) e “Razão e Sentimento” (Ivo Barroso)
1- Uma mesma língua | significantes diferentes, significados iguais | Conforme a leitura comparada progredia, a constatação da riqueza linguística em ambas as traduções afirmou-se como uma certeza. Destaco estes dois casos que, para mim, foram peculiares.
S&BS| "(...) Marianne, meio vestida, estava ajoelhada contra um dos assentos de janela"
R&S| "(...) Marianne, ainda meio vestida, estava ajoelhada numa das conversadeiras da janela (...)" Pg. 126
Neste trecho, a versão portuguesa faz uma tradução literal enquanto que na tradução brasileira utiliza um termo diferente. A minha dedução imediata seria a de que a designação "conversadeiras" poderia ser uma expressão somente de uso no Brasil. Munida de curiosidade busquei informação sobre a natureza desta expressão. Acontece que este termo é utilizado em ambos países e é correcto utilizá-la. Além de "conversadeiras", também aplica-se a expressão "namoradeiras".
S&BS| "- Por favor, por favor, tem termos - exclamou Elinor. - E não mostres o que sentes a todos os presentes. Talvez ainda não te tenha visto.
Contudo, isso não era fácil de acreditar . E ter termos em tal momento (…)" Pg. 131
R&S| " - Por favor, mana, controle-se! - exaltou-se Elinor. - Não demonstre seus sentimentos a todas as pessoas presentes. Talvez ele ainda não a tenha visto.
Isso era, no entanto, algo superior às suas forças; e dominar-se naquele momento (…)" Pg. 124
Em Portugal, dizer "Ter termos" é o mesmo que dizer "Ter modos". Contudo, fico com a sensação de que a intenção da tradutora com o "tem termos" também possa significar que "tudo tem limites". Mas isto é apenas uma ilação que surgiu-me ao reflectir sobre isto. Em Razão e Sentimento encontramos as expressões "controlar-se" e "dominar-se" o que apela ao significado da contenção de gestos e de acções. Ambos parecem-me adequados. Por uma questão de curiosidade, partilho o pensamento que me passou pela mente de que a tradução portuguesa feita deste trecho parece apelar à razão; enquanto na tradução brasileira, faz antever sentimentos. Será que enxergo a dicotomia do título da obra até na escolha das expressões aplicadas?
2- Opções e dúvidas | Tenho a firme certeza de que esta categoria irá acompanhar todo o percurso desta Leitura Comparada. Encontro com regularidade trechos que fazem-me pensar duas vezes. Questiono, com frequência o que podemos considerar uma liberdade de tradução e o que podemos admitir como sendo a opção mais correcta para transmitir o sentido que o autor quis atribuir ao escrever determinada frase.
S&BS| "Poderia ser razoavelmente feliz com LucySteele; poderia, pondo de parte a sua afeição por ela, com toda a sua integridade, delicadeza e cultura, satisfazer-se com uma mulher como ela… inculta, falsa e egoísta?" Pg. 104
R&S| "Poderia, pondo de parte sua afeição por ela, considerando a sua integridade, sua delicadeza, seu espírito bem-formado, satisfazer-se com uma mulher como aquela… inculta, capciosa e egoísta?" Pg. 99
Confissão: eu fui ver o significado de "capciosa". Fiquei surpreendida com esta opção porque não sendo uma palavra do uso quotidiano, traduz na perfeição "artful". Neste aspecto, "Razão e Sentimento" teve uma melhor posição já que "capcioso" é ainda mais específico do que "falso" já que implica um tipo de falsidade ardilosa e astuta: como uma serpente.
S&BS| "(...) convivendo com pessoas mais simples, com objectivos mais frívolos, lhe teriam talvez roubado aquela simplicidade que anteriormente dera interesse à sua beleza." Pg. 104
R&S| "(...) vivido numa sociedade inferior e em passatempos frívolos, teria talvez roubado a ela aquela simplicidade que antigamente talvez emprestasse um carácter interessante à sua beleza." Pg. 99
Este trecho levantou-me algumas dúvidas. Quando JaneAusten escreveu "inferior society" - e ela o fez com regularidade e não unicamente em Sense and Sensibility - tem sempre a conotação de se referir a pessoas de um estrato social baixo. O termo "pessoas simples", no nosso contexto actual, não significa exactamente um estrato social inferior; assim como não parece descabido dizer que há pessoas simples em classe sociais mais elevadas. A minha dúvida reside justamente nisto: se há equivalência entre o "pessoas simples" e "sociedade inferior".
S&BS| "Num tom firme, mas cauteloso (…)" Pg. 108
R&S| "Num tom firme, embora cortês (…)" Pg. 103
Esta é outra frase que levantou-me muitas dúvidas. "Cautious tone" parece-me significar mais "cauteloso" do que "cortês". Não sei se a intenção seria a de transmitir a ideia de que apesar do "tom firme" teria sido feito com simpatia (simpatia - cortesia) e não com rispidez.
S&BS| "Elinor, sem reparar nos diversos tons que coloriam a cara de sua irmã e no ar animado que demonstrava interesse pelo plano, emitiu imediatamente uma grata mas absoluta recusa em nome das duas, acreditando estar a exprimir a vontade de ambas" Pg. 113
R&S| "Elinor, sem dar atenção à alegre expressão da irmã, que não encarava a possibilidade com indiferença, ofereceu imediatamente uma desculpa agradecida mas decidida pelas duas, acreditando dessa forma exprimir a vontade de ambas." Pg. 108
Eu adoro esta passagem. Fico a imaginar a expressão de deslumbramento de Marianne. Fico a imaginá-la a sonhar, na fracção de segundos que se segue ao convite de Mrs. Jennings, com a possibilidade de ver Willoughby novamente. É esta expressão de deslumbramento e de êxtase que eu não vejo em ambas as traduções e que JaneAusten expressa através do "thevaryingcomplexion". Em Sensibilidade e Bom Senso, a tradutora usou "diversos tons que coloriam a cara de sua irmã" que me parece semelhante ao escrito por Jane. Embora, eu ache que signifique mais. É como se ela dissesse: ela mudou totalmente de expressão. Em Razão e Sentimento, o tradutor generalizou, tomou pelo sentido geral: "alegre expressão".
S&BS| "Às vezes, a importância de um assunto é exageradamente aumentada, devido às circunstâncias, para além do seu verdadeiro valor (…)" Pg. 161
R&S| "Tudo às vezes depende mais das circunstâncias do momento do que de seu valor real (…)" Pg. 152
Seleccionei esta frase apenas porque gosto muito dela. E gosto, inclusive, da forma como Ivo Barroso a traduziu.
3- Expressões e ditados populares | Uma expressão idiomática ou um ditado popular deve consistir num desafio para quem traduz porque está repleta de subjectividade cultural. Não resisti em destacar esta expressão que se segue:
S&BS| "-Bom, minha querida, há um ditado muito certo acerca do vento mau, pois isto será muito bom para o coronel Brandon." Pg. 146
R&S| "-Bem, minha querida, há muita verdade no ditado de que os males vêm para bem, pois isto vai ser bom para o coronel Brandon." Pg. 138
Pesquisei para saber no que consistiria a expressão "illwind". No MacmillanDictionary, refere que "ill wind" quer significar que quando algo ruim acontece é de esperar que aconteçam mais coisas ruins. Porém, neste mesmo site e no UsingEnglish explicam o sentido que esta expressão contextualizado no ditado popular "It's an ill windthatblows no good" cujo o significado é o mesmo que dizer que há coisas más que acontecem que resultam positivamente; ou como aplicou Ivo Barroso em Razão e Sentimento: "os males vêm para bem".
Em traços gerais | Posso continuar a afirmar que a Leitura Comparada destas duas traduções continua a fascinar-me. Está a ser muito interessante analisar e identificar o rumo que cada tradutor escolheu para o seu trabalho tendo como base de comparação o original. Para já, prefiro não fazer considerações mais aprofundadas sobre a opinião que estou a formar, até porque ainda falta uma etapa. No fim deste exercício de comparação, irei fazê-lo. Nesto momento, guardo este sentimento de que a tarefa de tradução deve levantar muitas dificuldades de escolha e de tomada de decisão do melhor caminho a seguir. Neste percurso, sinto que não estou somente a ler duas traduções. Sinto que estou a ler um diário de viagem.
Encontrei agora mesmo esta capa de "Sense and Sensibility" e não resisti em partilhar convosco. Sou uma grande fã de ilustração e achei esta muito interessante. A capa é da autoria de Audrey Niffenegger e estará disponível para venda a partir de 25 de Outubro.
Ao pesquisar imagens sobre Mrs. Ferrars, não resisti a tentação em compará-la com a ilustração de Chris Hammond de 1899. A semelhança pode ser coincidência, mas é espantosa.
Em Sensibilidade e Bom Senso 2008 eu posso afirmar que presenciei algumas agradáveis surpresas e algumas pequenas decepções.
Inicio pelas decepções. Uma delas eu já referenciei: Willoughby/Dominic Cooper. Infelizmente, não foi a minha única decepção. O casal Palmer também foi uma grande decepção: um casal absolutamente insípido. No livro, este casal proporciona alguns momentos de humor mas nesta produção ficam muito aquém. Neste caso, penso que tal aconteceu por uma escolha do argumento. Este casal não teve muito destaque e, portanto, não poderia ser um ponto marcante. Mas também Mrs. Jennings de S&S 2008 causou-me alguma decepção e, neste aspecto não penso ser devido ao argumento. Não quero com isto dizer que trata-se de uma má interpretação, apenas acho que Linda Basset não transmitiu a jovialidade desta senhora, apesar da mesma ser madura. Penso que ela poderia ter explorado muito mais o lado divertido e jovial de Mrs. Jennings.
Para equilibrar, há algumas surpresas agradáveis e que proporcionam momentos de interesse na série. É o caso de John Middleton, o primo que se propõe a receber as mulheres Dashwood em Barton Cottage. Acho que Mark Williams faz uma excelente actuação. Ele consegue recriar o Sir John que nós lemos em Sensibilidade e Bom Senso de Jane Austen.
Também destaco a personagem Anne Steele, interpretada por Daisy Haggard. Tenho que confessar que ela fez-me dar boas gargalhadas. Inconveniente e simplória, fala pelos cotovelos e sempre diz o que não deveria na hora mais imprópria possível. Causa alguns constrangimentos à sua irmã Lucy Steele. É ela quem revela o segredo do compromisso entre Lucy e Edward e este foi um dos momentos altos da mini-série. A realidade é que ela rouba a cena sempre que aparece.
A presença marcante de Mrs. Ferrars é outra agradável surpresa. Jean Marsh apresenta-nos uma Mrs. Ferrars com um estilo semelhante ao de Lady Catherine de Bourgh de O&P. Uma matriarca com posição social e posses, que tem o futuro do filho mais velho pré-determinado e que não concebe outro destino para ele que não seja aquele que ela mesma concebeu. Sobretudo, planeia um casamento proveitoso para ele. Aliada à sua filha Fanny Dashwood, mostra-se antipática e desdenhosa relativamente às irmãs Dashwood e, particularmente, de Elinor.
Não será absurdo dizer que quando assistimos a um filme/série alimentamos algumas expectativas e obtemos algumas surpresas. Acho que o balanço é positivo. As agradáveis surpresas, no que diz respeito à construção de personagens e actuações, minimizam a decepção que outras terão causado.