Para quem leu ou viu algum filme sobre Mansfield Park conhece o final. Fanny não cede a Henry, este por sua vez enfraquece e cai na tentação chamada Maria. A “desgraça” abate-se sobre a família Bertram à sombra do escândalo da infidelidade. Mas, no fim, como em todas as histórias de Jane Austen, tudo se resolve, tudo se acalma e tudo se compõe.
Fanny acaba por casar com Edmund. Mas, permitam-me expressar a minha opinião, que proposta tão sem sal, tão sem propósito e tão com sabor a prémio de consolação. A mim, sempre me pareceu que Edmund não teve coragem de assumir o seu sentimento por Mary Crawford nem antes nem depois do escândalo. E, por ter de se conformar de que não poderia tê-la lá se lembrou das qualidades da prima e lá constatou de que até vinha a calhar pedi-la em casamento. Tenho de confessar-vos de que não gosto deste final.
Eu acreditei em Henry. Tenho pena que nem Fanny nem Jane Austen tenham acreditado. Penso que ele reconheceu e identificou todas as qualidades de Fanny: ele olhava-a e via uma mulher, uma grande mulher; enquanto o primo só sabia ver a prima que tinha paciência para lhe ouvir. Henry lutou, persistiu, pediu-a em casamento, declarou-se, procurava realmente ouvi-la, entendê-la e, sobretudo, por causa dela, procurou mudar de atitudes. Ele procurou a redenção. Ele falhou, é verdade. A dada altura, ele desistiu. Mas para um espírito inconstante e cônscio das suas falhas, Henry procurou ser merecedor e mostrou que poderia ser. Fanny foi impiedosa. A dada altura, pareceu-me que ela quase que acreditava, quase que se deixava levar, quase que correspondia… Um pouco mais e talvez Henry alcançasse o coração de Fanny. A persistência abandonou-o pelo caminho.
E sobre o desenlace, todos sabemos.
Assumo que, nesta obra de Jane Austen, o meu coração foi capturado pelo “canalha”. Prefiro Henry - um pecador assumido, que se mostra disponível para a redenção - do que Edmund - um virtuoso superficial, que diante da provação cai com demasiada facilidade e cujos actos contradizem as palavras. Talvez ambos tenham sido reféns dos seus próprios sentimentos e constataram que é o viver a vida que comprova a validade das nossas convicções.
Fanny ganha a pessoa com quem sempre sonhou. A meu ver, sai perdedora.
Fanny Price é o nome que lhe trespassa os lábios como uma entrada directa para uma outra dimensão. Para um andar acima, um passo no desconhecido. Henry Crawford passou a ver tão distintamente e tão claramente que chegava a ser ofuscado. Nasceu-lhe um sentimento para o qual não estava preparado e nem sequer sabia encontrar-lhe definição. Se o ponto de partida foi a concretização de um capricho e o sanar de um orgulho ferido, agora Fanny tomou-lhe totalmente os pensamentos e o coração.
“Era um quadro que Henry Crawford não poderia deixar de apreciar. Os atractivos de Fanny aumentavam — aumentavam duplamente; pois a sensibilidade que embelezava a sua pele e iluminava o seu rosto já era em si um atractivo. Ele já não tinha dúvidas sobre as capacidades do coração dela. Ela tinha sentimento, genuíno sentimento. Seria alguma coisa ser amado por uma criatura, despertar os primeiros ardores daquela jovem e pura consciência! Estava mais interessado por ela do que havia previsto.”
Ela sempre esteve ali ao alcance de sua vista mas nunca lhe havia dado a devida atenção. Fanny, a discreta Fanny. A parente pobre. A jovem tímida e silenciosa. A única mulher que se atreveu a não lhe conceder a atenção que ele julgava ser merecedor. A única que demonstrou não encontrar o menor interesse na sua pessoa.
“Eu mesmo ainda não sei bem o que vou fazer de Miss Fanny. Não a compreendo. Não poderia dizer o que ela pretendia ontem à noite. Que temperamento tem ela? Será solene? Será esquisita? Será afectada? Por que teria se retraído e olhado para mim com um ar tão sério? Mal pude arrancar-lhe algumas palavras. Nunca estive tanto tempo em companhia de uma jovem, procurando entretê-la, que fosse tão mal sucedido! Nunca encontrei alguém que me olhasse com tanta severidade! Preciso tirar o melhor partido disto. O olhar dela me diz: “Não hei-de gostar de si e estou decidida a não gostar”; e eu digo que ela gostará.”
Henry não podia acreditar que Fanny não lhe caísse nas graças quando as suas duas primas – Maria e Julia – perderam-se de amor por ele. Ele não podia conceber que isso fosse possível e afirmou para si próprio que havia de conquistar Fanny. Havia de empenhar toda a sua arte de lisonja e de sedução para cumprir a missão de juntar Fanny Price à sua lista de conquistas.
Afinal quem Fanny Price julgava que era para menosprezar Henry Crawford?
Sabemos que ele não era bonito mas que tinha boa aparência. Mostrou-se ser um conquistador e um “bon vivant”. Um namorador. Alguém que se divertia a exercer a arte da sedução e manipular os sentimentos. Todas estas características chegam aos nossos olhos através de palavras, acções e descrições.
Henry, pobre Henry… ele ainda não sabia. Ele ainda não sabia que o seu caminho havia de chegar a um ponto de paragem, a um momento de tomada de consciência. Ele não sabia que a sua vida despreocupada e vazia havia de lhe pesar bem mais do poderia imaginar. Nada o impressionava e nada o prendia.
Henry Crawford não era, portanto, bonito. Tinha boa aparência e sabia usar das palavras. É através da voz de sua irmã Mary Crawford que vemos uma descrição da sua personalidade:
“– Minha cara irmã – disse Mary – se você conseguir persuadi-lo a tal coisa, será para mim um grande prazer encontrar uma aliada de tanto valor e só sinto que você não tenha pelo menos meia dúzia de filhas para dispor. Se quiser que Henry se case, tem que procurar uma francesa. Tudo o que a habilidade inglesa poderia fazer já foi tentado. Eu mesma tenho três amigas, cada qual mais louca por ele; e os trabalhos por que elas, suas mães (por sinal muito sabidas), minha querida mana e eu mesma temos passado para fazê-lo reflectir sobre o assunto, e induzi-lo ao casamento, você nem imagina! É o maior namorador que se pode imaginar. Se as senhoritas não querem sofrer uma decepção é melhor que o evitem.”
Um conquistador, um namorador, um galanteador – eis como Henry Crawford é-nos apresentado. E também é assim que ele demonstra ser ao longo da história. Encontro na raiz desta sua característica de conquistador um factor que se torna evidente: a inconstância. Henry é dono do seu destino e pensa ser dono de suas vontades. A verdade é outra: a sua vontade é facilmente modelada. Inconstante. Extremamente inconstante. Ele vai com a sua irmã Mary Crawford até Mansfield Park apenas com o intuito de a acompanhar e acaba por mudar de ideias ao saber das irmãs Bertram. Elas não representam somente o desafio da conquista – porque não chegam a ser realmente um desafio já que caem tão facilmente na sua rede –, representam sobretudo um divertimento. A conquista é um divertimento e o divertimento o impede de sentir-se entediado. O prazer e o divertimento serial o antídoto contra o tédio. Disto tudo deriva a sua inclinação para a inconstância.
“Infelizmente Henry Crawford tinha verdadeiro horror por qualquer ideia de residência permanente ou prescrição de sociedade”
Conquistar a irmãs Bertram foi extremamente fácil. Bastaram três encontros sociais.
“Nunca Miss Crawford vira admiração igual à das Misses Bertram por Henry.”
O que poderia até ter gerado um certo desinteresse em Henry de tão fácil que foi a dupla conquista. O divertimento residiu no facto de ter gerado entre as irmãs Maria e Júlia uma disputa e uma dualidade. Quem seria a primeira a conseguir conquistar as atenções de Henry. Quem Henry escolheria? Henry deliciava-se e divertia-se com esta disputa. Ao mesmo tempo, era aliciante enredar Maria – uma jovem noiva e comprometida – numa série de galanterias que a levaram ter uma postura duvidosa.
“Sim, e por isso mesmo mais a aprecio. Uma mulher comprometida é sempre mais agradável do que outra que não o seja. Está contente consigo mesma. Não tem mais preocupações, sente que pode exercer todos os seus poderes de sedução sem causar suspeitas. Uma senhora comprometida está fora de perigo; nenhum se lhe pode fazer.”
Henry assemelha-se a um canalha. Alguém que não se preocupa com os sentimentos dos outros e com os estragos que poderia estar a fazer na vida de duas jovens. Quantos mais estragos poderá ter feito antes de chegar a Mansfield Park? Quantas jovens terá atingido com a sua fala mansa e jogos de sedução?
“Mary Crawford era notavelmente bela; e Henry, conquanto não fosse bonito, tinha muito boa aparência; ambos tinham as maneiras desembaraçadas e agradáveis (…)
O irmão não era bonito; quando o viram pela primeira vez acharam-no absolutamente sem atractivo, escuro e desinteressante; contudo era bastante delicado e tinha um porte agradável. No segundo encontro já não o acharam tão feio; feio ele era, mas tinha a fisionomia tão agradável, seus dentes eram tão bons, e era tão bem constituído de corpo, que não se notava a sua feiura; e, na terceira entrevista, quando jantaram juntos no Presbitério ninguém mais pensou em o chamar de feio. Ele era, na verdade, o rapaz mais agradável que as duas irmãs já haviam conhecido, e ambas ficaram igualmente encantadas por ele.”
Esta é a caracterização física curiosa sobre um suposto galã num livro. Henry Crawford é-nos indicado como alguém que, à primeira vista, é absolutamente desinteressante e sem graça. Chama a atenção que seja dito que “seus dentes eram tão agradáveis” o que, desperta o pensamento de que Henry seria sorridente e um bom conversador. Eu diria que o ponto forte em Henry Crawford seria o charme. Um homem que se revela no relacionamento e na própria linguagem corporal. Alguém que envolve com palavras e gestos.
Título Original: Criteria for Rating Heroes Retirado do site: Pemberley
Autor do Artigo: Ellen Moody
Traduzido e Adaptado por Clara Ferreira
Vou aproveitar a pergunta sobre "porquê que gostamos mais de alguns heróis de Jane Austen do que de outros?". Eu penso que não é apenas uma questão de não ter nada para os perdoar, porque algumas coisas são mais fáceis de perdoar que outras, e quando decidimos o que achamos mais fácil de perdoar estamos a dizer mais sobre a nossa própria moralidade do que à de Austen.
Os heróis que têm normalmente menos fãs, são aqueles que são profundamente morais; deixem-me chamá-los de tipo Ashley Wilkes (de "E Tudo o Vento Levou"): sensíveis, bons, leais, com um comportamento impecável, tacto, gentis e altruístas e muito convencionais no que toca ao sentido que têm sobre como deve ser um "gentleman"; Austen, claro, engana-nos e adiciona a estas características a reserva, utilizada para proteger o próprio (como vemos em Knightley no seu comportamento com Emma), também o ser acanhado, muito pouco alegre numa festa - características/defeitos muitas vezes apontados e aos quais os leitores não perdoam a Edmund Bertram, Edward Ferrars, Coronel Brandon e George Knightley. Tal como Rhett Butler diz, eles são cavalheiros apanhados num mundo que idolatra a beleza, suavidade e a liderança. Edward Ferrars e Coronel Brandon são fracos nessa batalha de domínio entre pessoas, o que talvez seja a essência da vida. Heróis deste género são patetas, pedantes e empertigados, epítetos comuns atirados contra alguns tipos de heróis em Jane Austen, não? Mas Austen crê que estes homens quando são também inteligentes, queridos e constantes (com devido rendimento), fazem as mulheres felizes, especialmente quando a natureza e gostos de ambos são similares, exemplo disso são Elinor Dashwood e Edward Ferrars ou Fanny Price e Edmund Bertram. Diria que Knightley não assenta bem aqui, uma vez que não é fraco na batalha da liderança, ela apenas partilha de algumas qualidades de Edward Ferrars, Edmund Bertram e Coronel Brandon, pelas quais alguns leitores tiveram muito tempo até lhes perdoar. Eu sou fã de Edward Ferrars e Edmund Bertram, embora não me quisesse casar com eles, eles aborrecem-me até às lágrimas; e para ser sincera, eu não acredito totalmente no Coronel Brandon. Ele é um evadido de uma ficção gótica, fantástica, teatral, afectiva mas não totalmente persuasiva; nem o casaco de flanela consegue esconder a origem.
Agora os heróis que são também vilões aos quais podemos chamar de tipo Rhett Butler. Para ser menos anacronista e estar mais próxima do arquétipo fundamental temos os nossos subtis libertinos: Willoughby, Wickham, Henry Crawford, Frank Churchill e talvez William Walter Elliot. Estes são homens sedutores, sedutores precisamente porque são perigosos, engraçados de estar, divertidos, bonitos. O que +e que temos para perdoar aqui? Deslealdade, ter tido sexo com outra mulher, indiferente, despreocupado, egoísmo, a habilidade de estar infinitamente inactivo e mais importante, a incapacidade de olhar para eles próprios e ver o que está mal e mudar, porque eles não podem sentir o tipo de alegria que surge com o amor intenso e tudo o que vem com ele. Parece que Austen sugere que, enquanto grupo, estes homens são pouco profundos nas suas emoções, porque a estes "libertinos" dos romances é dada uma intensidade de emoção em demasiada escala. Austen não permite isso; isso é o delicioso veneno que bebemos para a nossa própria destruição. Eu diria que muitas pessoas não teria assim tão grandes problemas em perdoar as falhas acima citadas, mas Austen considera esse tipo de homem um mau material para maridos; e eu sugiro que a única qualidade que ela seria incapaz de perdoar a estes homens é a sua insensibilidade e inconstância. No entanto, sejamos justos, são géneros divertidos, nunca um momento aborrecido com Willoughby - embora lendo com cuidado, podemos afirmar que ele pode ser visto como pouco profundo e egoísta. É o tipo de rapaz que não se arrepende de ter passado um bom bocado, mas terrivelmente arrependido de não ter conseguido o seu doce no fim. E a Henry Crawford são dadas possibilidades, somos levados a achar que ele pode ter-se transformado no 3º tipo, embora eu duvide.
Temos agora o 3º tipo, no qual eu sugiro que Henry Tilney entra. De certa maneira, Jane Austen foi a inventora deste tipo e por isso lhe chamarei o tipo de Frederick Wentworth. O que temos para lhes perdoar é aquilo que temos de perdoar a qualquer ser humano que é fundamentalmente decente e querido e inteligente e também capaz de ter uma conversa interessante - o tempo e as circunstâncias é que não estiveram sempre do seu lado. Isso acontece com Darcy - Darcy tem sido objecto de sincopacia continuada, demasiada indulgência e possuidor de um coração frio e repleto do orgulho materialístico de todas as Ladies De Bourgh deste mundo. Ele precisa de olhar para o seu coração para poder mudar. E fá-lo. Temos de lhe desculpar as reprimendas, a arrogância, o pessimismo em relação à natureza humana, uma certa frieza (...). Este grupo inclui Wentworth o meu herói favorito (...). Henry Tilney também não tem tudo do seu lado - tenhamos como exemplo o seu pai tirano; mas a sua mãe parece ter sido muito boa pessoa (tal como a mãe de Anne Elliot) e o rapaz tem a felicidade de possuir rendimento e garantir a sua independência. Na verdade, não havendo nada para perdoar, talvez por ser ainda tão jovem e alegre e tão humano, e por isso o coloco neste 3º tipo inventado por Jane Austen, os cavalheiros que têm tudo, tudo o que encanta uma mulher e que fazem deles um partido. Deixem-me terminar com George Knightley, porque ele sofre da falha que tem Tilney - não há nada a perdoar - mas neste caso, pobre homem, não podemos perdoar-lhe a perfeição, porque ao contrário do tipo 1, ele não é fraco nem pedante, nem acanhado (embora, tal como ele diz, não saiba muito bem expressar-se no que toca aos sentimentos do coração). Mas, lembremo-nos, conhecemos Knightley apenas pelo ponto de vista de Emma e talvez seja por isso que ele nos pareça tão perfeito. Mas eu amo Knightley, de verdade. Adoro o seu tacto, a cortesia, o cavalheirismo, o seu pensamento sempre acertado, nem me importa o seu pensamento moral por vezes exagerado. (...)
É certo e sabido que, antes das nossas heroínas casarem com o amor das suas vidas, são sempre sujeitas a pedidos de casamento indesejados, aqui fica a lista dos rejeitados.
Sensibilidade e Bom Senso
Em Sensibilidade e Bom Senso, ninguém é rejeitado oficialmente, no entanto, eu arriscaria atribuir este título ao Coronel Brandon, visivelmente rejeitado por Marianne até aos últimos capítulos - mas quem ri por último, ri melhor, já diz o ditado.
Orgulho e Preconceito
O grande rejeitado deste romance é Mr. Collins, essa personagem ridícula; mas o nosso Mr. Darcy também passa pelo crivo da rejeição antes de conquistar Elizabeth Bennet.
Emma
Mr. Elton é o eleito, cuja proposta feita no interior da carruagem, não deixa de ter um tom cómico!
O Parque de Mansfield
Pois é... Henry Crawford conquista todas, menos Fanny Price, e embora não ouça da sua boca a rejeição, sente-a igualmente.
Persuasão
O falso do Mr. Eliot é rejeitado, graças a deus!
Abadia de Northanger
Mal seria se a nossa Catherine preferisse o odioso do Mr. Thorpe ao adorável Mr. Tilney.