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Jane Austen Portugal

O Blogue de Portugal dedicado à Escritora

Jane Austen, Fanny Price, o Cepticismo e o Divino.

Escrever sobre Fanny Price e sobre Mansfield Park tem revelado a grata surpresa de que há muitas leitoras a partilharem, tal como eu, uma preferência por Henry Crawford. Tem sido agradável este feedback, através dos comentários, sobre o facto de que somos quase um "clube" a ansiar que Jane tivesse destinado para Fanny Price outro destino: render-se ao amor de Henry. Sabemos que não foi este o desenlace ocorrido e lamentamos...

 

Por que Jane Austen preferiu ignorar todas as provas de tentativas de mudança de Henry e fez com que Fanny não lhe cedesse afecto? Aquando da primeira vez que li Mansfield Park, esta foi uma pergunta que martelou a minha cabeça. Lembro-me perfeitamente da sensação de desconforto e da inconformidade com aquele final.  Durante algum tempo pensei que a razão principal seria manter a coerência da personalidade de Fanny Price, uma mulher de princípios rígidos e firmes. Mas, gradualmente -  e quanto mais tenho pensado nisso - constato que a razão ultrapassa Mansfield Park (apesar de ver bem evidente nesta obra) e é premente em toda a obra de Jane Austen.

 

Espero não estar a ser abusiva em afirmar que há um tom de cepticismo na forma como Jane desenha a sociedade e os inter-relacionamentos sociais da sua época. Os personagens, nas suas imperfeições e virtudes, apesar das vicissitudes e das falhas que cometem não modificam o seu comportamento. A única personagem que recordo sofrer alguma modificação foi Emma, ao ver as consequências de seus erros de julgamento. Ainda assim, no caso de Emma, a admissão dos erros e a correcção dos mesmos não geram uma mudança profunda de personalidade: Emma não deixa de ser Emma.

Henry Crawford, Willoughby, Mr. Frank Churchill, Mr. Wickham, Mr. Thorpe, General Tilney, Tia Norris, Fanny Dashwood - todos estes possuem um carácter duvidoso e Jane não deixa entrever uma mudança. O único sobre o qual caiu uma luz de esperança foi Henry Crawford, mas este também não resistiu.

 

Teria Jane Austen a crença de que um escorpião nunca nega a sua natureza? Teria ela a convicção de que uma pessoa não era capaz de viver um arrependimento transformador que causasse uma revolução comportamental?  É estranho constatar isto, ainda mais quando é evidente que ela acreditava em segundas chances. A sua obra é repleta de momentos em que os seus heróis vivem uma segunda chance: Elinor e Edward, Elizabeth e Darcy, Anne e Wentworth, Mr. e Mrs. Weston, entre outros. Seja por infortúnio seja por mal-entendidos, Jane Austen concedeu algumas segundas chances de emendar um erro e de refazer julgamentos precipitados. Por outro lado, quando o assunto era o carácter e a natureza do personagem parecia não haver ponto de variação: seria imutável. Admitia que o que pensamos de alguém pode ser algo formulado por um julgamento precipitado e, por isso, suceptível de sofrer modificação; mas quando o assunto centrava-se no que este alguém realmente é, na sua essência, isto nunca passaria por uma mutação.

 

A forma como Jane retrata a sociedade através de seus personagens é, muitas vezes, carregada de humor e isto leva a que seja-lhe imputado uma tónica de crítica social.  Será? Será que podemos admitir isso. Reconheço-lhe uma enorme capacidade de observação e de destaque dos pontos fracos da sociedade, mas ao fazer isto estaria ela a preconizar, a defender ou a antever uma real mudança da sociedade? Experimento uma hesitação em responder esta questão.

 

Ao admitir uma Fanny Price de carácter irrepreensível e de virtudes constantes e, ao mesmo tempo, ao criar um Henry Crawford perpetuamente falho e imperfeito; Jane Austen gera um desequilíbrio. Parece que estamos diante de dois pesos e duas medidas. Neste ponto do meu devaneio, interrogo-me se Jane não estaria certa: a perfeição não sofre alteração mas o imperfeição nunca poderá modificar-se de forma a tornar-se perfeita. Quase uma separação entre o divino e o humano.  Como diria Henry, Fanny é uma visão angelical. Alguém a quem dificilmente outro ser humano chegaria perto sequer. Talvez - se concedermos que os personagens tem vida própria para além da pena do escritor e do olhar do leitor Henry Crawford tenha se rendido submisso ao cepticismo de Jane Austen e constatado que nunca estaria à altura de Fanny. 

 

Como vêem,  Jane Austen afigura-se aos meus olhos como uma mulher, até certo ponto, indecifrável. Não sei se seria uma mulher céptica e conservadora ou se seria crítica e progressista. Neste aspecto, Fanny Price e a sua perfeição divina não me ajudam a chegar a uma conclusão definitiva.