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Jane Austen Portugal

O Blogue de Portugal dedicado à Escritora

ShortStory2 | Parte 34

Anne Elliot amanheceu sem ter anoitecido. Anne tinha à volta de seu leito páginas e páginas escritas, lidas e relidas. Pouco a pouco, a luz estreitava-se pelo tecido espesso do cortinado e acendia o espaço do soalho adormecido; mas Anne, mais desperta do que nunca, distraía-se ao chilrear dos pássaros. “Todos os dias deviam iniciar com esta simplicidade”, pensou.
Exaurida, porém, feliz; ela relembra tudo o que aconteceu. Não poderia imaginar que o baile promovido por Emma Woodhouse poderia vir a ser o reinício da sua história.
Inicialmente, temia o baile. Não confiava na sua capacidade de dissimular os seus próprios sentimentos. Sabê-lo tão perto de si e, ao mesmo tempo, tão inacessível era um sofrimento. De igual forma, parecia-lhe reconfortante usufruir nem que fosse de um pequeno cumprimento ou gesto de cortesia. Ambicionar mais não constituía uma probabilidade.
Não podia ignorar toda a delicadeza e gentileza que Miss Woodhouse, assim como Mrs. Darcy, tinham-lhe dedicado. De tal forma, recusar o convite esteve, desde o princípio, fora de cogitação.
A noite apresentou-se, inicialmente, caótica; ou talvez o seu estado de espírito estivesse alterado. Anne Elliot não era ignorante quanto ao trato social e ao convívio em bailes, mas a realidade é que sentiu-se inexperiente. Todo o alvoroço e reboliço de jovens a bailar, música e conversas animadas a compeliam a um certo isolamento. Perseguia-a uma inusitada sensação de estar a ser observada. A dada altura, sentiu-se ridícula porque tratava-se de facto de um salão cheio de pessoas e todos estavam empenhados na diversão e no convívio; portanto, ser observada aconteceria inevitavelmente. Ciente disto, mas sem deixar de sentir esta sensação, procurou um local mais isolado para descansar e encontrar alguma serenidade.

Guiada por este intuito, encontrou alguém com a mesma intenção. Jane Churchill também se refugiou da azáfama do baile; mas, ao contrário de Anne, ela apenas queria descansar. Anne, por seu turno, estaria bem capaz de fugir de si mesma. Ambas começaram a conversar sobre trivialidades: do tempo, da beleza dos vestidos, do tamanho do salão; a empatia foi imediata. Perceberam instintivamente que partilhavam de interesses mais consistentes e de assuntos infinitamente mais profundos. Começaram a falar sobre música, piano, canto, poesia e prosa.

Quem as visse, de longe, imaginaria que seriam grandes amigas e que se conheciam há anos. Bastou a Anne Elliot inquirir a Jane Churchill: “Há quanto tempo é casada?” para Jane partilhar um pouco do seu percurso de vida. É de sublinhar que Jane Churchill estava surpreendida consigo visto sempre ter prezada a discrição e sempre ter sido uma mulher reservada. Contudo, sentia-se tão à vontade com Anne Elliot que mostrava-se gentil e ouvia com real interesse o que Jane lhe dizia. Há muito tempo que Jane precisava de uma amiga e parecia ter encontrado alguém que inspirava-lhe confiança. Quando deu por si, Jane contava a Anne todo o seu percurso desde a infância e de todo a sua história com Frank Churchill. Este era, sem dúvida, o início de uma grande amizade.

 

Jane Churchill afigurou-se aos olhos de Anne Elliot como uma grande mulher de coragem, perseverança e generosidade. Admirou a sua capacidade de manter intacto o seu sentimento por Frank mesmo quando este o escondia de todos; e, também, a sua capacidade de perdão por toda a dissimulação que ele fez. “Que sofrimento deve ter sido sofrer calada por uma amor desigual e secreto!”, constatou Anne. De repente, Anne caiu em si. Começou a perceber a similaridade de histórias. Avaliou que é possível haver uma segunda chance. Enquanto ouvia Jane, sentiu o seu coração aquecer ao imaginar se seria possível algum dia ter uma segunda oportunidade. De rosto levemente inclinado, de sorriso subtilmente aceso, levantou os olhos lentamente e, sem perceber quando, como e porquê viu-se abraçada pelo olhar de Frederick Wentworth.
Este observava-a há várias horas, de longe, silencioso. Naquele instante, encontrava-se do lado de fora do salão, perto de uma das várias portadas que dividem este dos jardins. Protegido pela penumbra da noite, observava-a. Verificava as mudanças que a sua expressão assumia. Anne, de tal forma, atingida pela intensidade daquele olhar que pediu licença a Jane Churchill e procurou os aposentos mais reservados para se refrescar. Se o seu rosto espelhasse o que ia no seu coração, estaria em chamas. No movimento de levantar-se e de ausentar-se do salão principal; Frederick seguiu-a ao longo das várias portadas.
Quando Anne deu o primeiro passo de regresso à companhia de Jane Churchill, deu por si diante de Frederick. Imenso em grandeza e presença. Anne parou. Não se tocaram, não trocaram palavras, não se mexeram. Se havia música, se o piano tocava, se as pessoas dançavam e conversavam isto deixou de ter qualquer relevância. A presença um do outro bastava e ensurdecia toda a realidade. Então, como se falassem entre si, sem enunciar qualquer som ou gesto, o entendimento que partilhavam fê-los caminhar em simultâneo para a frescura dos jardins daquela noite de Agosto.

ShortStory2 | Parte 33

"Escrevo a palavra felicidade nas linhas do meu coração.

Escrevo, nestas páginas que me acompanham ao longo dos meses, a observação do mundo em que vivo.

Escrevo para não esquecer-me do meu percurso: sentimentos, pensamentos e sonhos. Tenho de escrever para que não me perca de mim própria e para não esquecer-me de quem eu sou. Alturas houve em que senti-me invisível, pequena e insignificante. Alguém que somente é lembrada quando necessária. Quando vivemos em tal solidão e quando pertencemos a uma família tão frívola e fria há-que ter um escape: encontrei tal bálsamo no silêncio da escrita. É bem certo de que tive os meus dias de felicidade no passado. Foram os dias em que o conheci e através dos quais descobri-lhe a grandeza de carácter. Outrora, vi nascer em mim um sentimento mais forte do que poderia imaginar sentir. Por amor a ele e, talvez, por alguma insegurança, abdiquei deste sentimento. Abdiquei. Isto foi um sacrifício pago a um preço demasiado elevado. Permiti que arrancassem de mim meu viço, minha voz, minha alma, meu coração.
Passados tantos anos, bastou-me ouvir-lhe a voz e sentir-lhe o olhar. Bastou-me, atrevo-me a dizer, saber de antemão a sua presença. Os meus olhos fugiam ao reencontro. Como não fugir? Como não recear? Como não sentir esta insegurança de, até hoje, sentir-me pequena, frágil e fraca? Como conceber uma possibilidade de perdão? Poderia eu exigir da vida mais do que ela me deu? Poderia eu admitir a remota hipótese de que teria uma segunda chance?
Ele é a própria materialização de tudo o que eu nem sequer teria coragem de sonhar-me merecedora. No entanto, hoje encontro-me diante destas páginas e confronto esta estranha sensação de felicidade. Esta pequena luz. Este chamado que a Providência permitiu-me entrever. Ele, que julguei inalcançável e, para sempre, distanciado da minha vida. Ele, aparentemente indiferente. Ele, ciente do que sente e do que quer. Ele e a intensidade das suas palavras que ainda martelam na lembrança da noite do Baile."


 

 

Escreveu furiosamente para não deixar um só detalhe de tudo o que a fazia, naquele momento, duvidar até da sua própria sanidade. Ria, chorava, escrevia, parava, retomava páginas e páginas. “Elas serão as minhas testumunhas. Elas serão a prova da minha felicidade”, pensou. Por vezes, interrompia os seus gestos e tornava-se estática a pensar em tudo o que aconteceu e em todas as palavras que ouviu. Aflorava-lhe um sorriso distraído e um lampejo de rubor. Febril e enérgica, sentia-se tão distante do que foi até este dia. O rumo da sua vida mudou e só ela, ele e as páginas que preencheu com fervor, ao longo de toda a madrugada, eram conhecedores deste facto. 
Mas, em breve, todos saberiam.

 

O Monte dos Vendavais (2011)

 

Estreou nos cinemas portugueses a mais recente adaptação de O Monte dos Vendavais no dia 10 de Maio.

 

Numa visita a Liverpool, um agricultor natural de Yorkshire encontra um rapaz sem-abrigo e, de regresso a casa, resolve trazê-lo consigo para viver como parte da sua família. Mas nos isolados campos do Yorkshire, o rapaz acaba por forjar uma relação obsessiva com a filha do agricultor. O Monte dos Vendavais é uma nova abordagem do romance de Emily Bronte pelo olhar inovador de Andrea Arnold, a visionária realizadora de Aquário” e “Sinal de Alerta”

 

Zon Lusomundo