Cecília não se tinha arrependido por ter alargado o seu tempo de permanência em Paris por mais um dia. A verdade era que precisava pensar, colocar as suas ideias em ordem e definir exactamente aquilo que faria para conseguir solucionar aquela estranha situação sem causar grandes males a alguém. Muito especialmente a Henrique.
Henrique. O seu Henrique. Ansiava pela hora de o reencontrar, de lhe pedir perdão pelas suas últimas atitudes e por lhe explicar as razões do seu comportamento nos últimos tempos. Estava muito optimista. A reunião do dia anterior tinha corrido muito bem e o tempo em Paris convidava ao passeio e à descontracção. Saíra do hotel logo pela manhã para poder caminhar pelos Campos Elísios, recordando com saudade e carinho todos os momentos que ali passara com ele. Na mão segurava um exemplar francês de "Persuasion" pour Jane Austen que adquirira, momentos atrás, num quiosque ali perto. Tencionava oferecê-lo à sua irmã logo que as duas conversassem e colocassem a sua relação no mesmo patamar em que a tinham deixado anos atrás. Júlia adorava o idioma francês, que fazia parte da sua área de estudos, e sabia que ela ambicionava um exemplar daqueles na língua do amor, como tantos lhe chamavam.
Cansada de caminhar, sentou-se num banco de jardim, um daqueles onde, no dia anterior, tinha estado, nos seus sonhos, a relembrar Henrique. Aconchegou a bolsa no seu colo e abriu o livro exactamente na página que desejava. Inconscientemente, sentiu que alguém se sentava ao seu lado mas não prestou sequer atençao. Deixou que a sua mente e o seu espírito divagassem livremente por entre a beleza daquelas palavras há tantos anos escritas.
"Je ne puis me taire plus longtemps. Il faut que je vous écrive. Vous me percez le cœur! Ne me dites pas qu’il est trop tard! Que ces précieux sentiments sont perdus pour toujours. Je m’offre à vous avec un cœur qui vous appartient encore plus que lorsque vous l’avez brisé il y a huit ans. Ne dites pas que l’homme oublie plus tôt que la femme, que son amour meurt plus vite. Je n’ai jamais aimé que vous. Je puis avoir été injuste, j’ai été faible et vindicatif, mais jamais inconstant. C’est pour vous seule que je suis venu à Bath, c’est à vous seule que je pense; ne l’avez-vous pas vu? N’auriez-vous pas compris mes désirs? Je n’aurais pas attendu depuis dix jours, si j’avais connu vos sentiments comme je crois que vous avez deviné les miens. Je puis à peine écrire. J’entends des mots qui m’accablent. Vous baissez la voix, mais j’entends les sons de cette voix qui sont perdus pour les autres. Trop bonne et trop parfaite créature! vous nous rendez justice, en vérité, en croyant les hommes capables de constance. Croyez à ce sentiment inaltérable chez
F. W.
Il faut que je parte, incertain de mon sort: mais je reviendrai ici, ou j’irai vous rejoindre. Un mot, un regard suffira pour me dire si je dois entrer ce soir ou jamais chez votre père".
Era espantoso como, fosse em que língua fosse, aquelas palavras eram sempre capazes de a tocar e de a fazer sentir-se leve e tranquila. E faziam-na lembrar-se dele; de como quase deixara fugir um grande amor como o de Anne e Frederick, o tipo de amor que tanto desejara. Isso fê-la pensar em Henrique com saudade, tanta saudade que lhe pareceu sentir o seu cheiro perto dela. Discreta e silenciosamente aspirou aquele aroma que julgava fruto da sua imaginação. No entanto, parecia-lhe tão real, tão presente no ar, à sua volta, que se sentiu tonta.
- Não me digas que é demasiado tarde, que sentimentos tão preciosos morreram para sempre! - disse a voz ao seu lado, em português, citando algumas das palavras que estivera a ler. Uma voz que lhe era demasiado familiar e demasiado querida. Uma voz que lhe fazia falta.
Rodou devagar a sua atenção para a voz e, mesmo antes de prender os seus olhos nos dele, soube que era Henrique. Não se moveu. Ele sorria-lhe, um pouco hesitante. Fechou o livro no seu colo e sorriu-lhe de volta, sem deixar de o olhar, como se temesse que ele fugisse ou que fosse novamente uma partida da sua mente.
- Henrique - murmurou - És mesmo tu? Que fazes aqui, em Paris?
Ele continuou a sorrir-lhe, mais tranquilo, pois sentiu-lhe a voz afável e calma. Ainda se recordava da sua frieza e distância quando a vira a última vez, em Poiares. Todavia, algo mudara nela. Reconhecia naquela mulher, ali sentada ao seu lado, num banco de jardim, nos Campos Elísios, em Paris, a mesma mulher que amava desde há muito tempo. Deixara de a reconhecer naqueles últimos tempos, contudo ela voltara. Era a sua Cecília novamente. O seu sorriso dizia-lhe que sim.
- Medito - disse meio a brincar - E tu?
- Vim em trabalho - disse apressadamente - Quer dizer, ontem estive em trabalho. Hoje, penso que... medito - disse com um sorriso suave e cúmplice.
Ele tomou-lhe as mãos por sobre o livro depositado no seu colo.
- Diz-me que é aqui, longe de tudo e de todos, que me vais explicar o que está a acontecer - pediu ele, com os olhos quase suplicantes - A minha vida tem sido um inferno sem ti, estes últimos tempos. Não sabes o que me tem doído estar sem a mulher que amo sem ao menos saber porque fui rejeitado.
Cecília pareceu pensar nas palavras dele. Depois levantou uma mão e acariciou-lhe o rosto, ainda para se certificar de que ele era real.
- Tens razão - disse - como posso eu ter rejeitado a minha alma, o meu coração,... a minha vida? - baixou o rosto, tomou-lhe uma das mãos e levou-a aos seus lábios como que para pedir o seu perdão.
Ele sorriu enternecido e com a outra mão afagou-lhe o cabelo, forçando suavemente o seu rosto para cima, para olhar para ele.
- Há uns tempos atrás, num destes mesmos bancos, nesta mesma cidade, pedi-te para nunca me deixares - relembrou-lhe - E não vou permitir que o faças porque sei que me amas tanto quanto eu te amo a ti. Não sei o que se passou, - continuou - mas deve ter sido algo grave, e penso que tem a ver com o meu irmão Eduardo. E, talvez não agora, talvez não hoje, mas eu quero que me contes tudo. E acredita que vamos resolver isso de forma a que nenhum de nós saía magoado... ou separado - tomou o rosto dela entre as suas mãos - Nunca mais me quero separar de ti. Enfeitiçaste-me a alma e o corpo.
Cecília deixou finalmente a cabeça repousar no ombro dele e deixou-se abraçar. Henrique era agora real e por mais que ela julgasse estar a sonhar, ele estava ali, era real e não ia desaparecer num qualquer sonho. Apertou-o contra si e soube que nunca mais se iriam separar.
No entanto, no seu subconsciente, algo insistia em angustiá-la. Eduardo e as suas exigências macabras; Bárbara e a sua petulância; Júlia e a sua relação com Eduardo. E ainda aquele estranho e insistente telefonema que a irmã continuava a receber diariamente às 17horas. Ainda havia muito a resolver. E seria difícil. Mas agora estava com Henrique e juntos saberiam combater e lidar com o que viesse a acontecer.