Fanny Price é o nome que lhe trespassa os lábios como uma entrada directa para uma outra dimensão. Para um andar acima, um passo no desconhecido. Henry Crawford passou a ver tão distintamente e tão claramente que chegava a ser ofuscado. Nasceu-lhe um sentimento para o qual não estava preparado e nem sequer sabia encontrar-lhe definição. Se o ponto de partida foi a concretização de um capricho e o sanar de um orgulho ferido, agora Fanny tomou-lhe totalmente os pensamentos e o coração.
“Era um quadro que Henry Crawford não poderia deixar de apreciar. Os atractivos de Fanny aumentavam — aumentavam duplamente; pois a sensibilidade que embelezava a sua pele e iluminava o seu rosto já era em si um atractivo. Ele já não tinha dúvidas sobre as capacidades do coração dela. Ela tinha sentimento, genuíno sentimento. Seria alguma coisa ser amado por uma criatura, despertar os primeiros ardores daquela jovem e pura consciência! Estava mais interessado por ela do que havia previsto.”
"continuava a achar Mr. Crawford muito sem interesse"
Fanny Price não gostou de Henry Crawford desde o primeiro minuto em que ele colocou os pés em Mansfield Park. Ela conseguiu enxergar toda a manipulação e sedução que ele exerceu sobre as primas Maria e Julia Bertram. Ela viu como a presença e a influência dele desestabilizou a harmonia característica de Mansfield Park. Então não é de espantar que para Fanny Price as atenções que Henry Crawford lhe dirige soem como uma ofensa. Fanny Price não é uma jovem que se deixe deslumbrar facilmente e que não se deixa enganar com palavras ocas e superficiais.
Quem Henry Crawford pensa que é para a incomodar com galanterias?
Ela sempre esteve ali ao alcance de sua vista mas nunca lhe havia dado a devida atenção. Fanny, a discreta Fanny. A parente pobre. A jovem tímida e silenciosa. A única mulher que se atreveu a não lhe conceder a atenção que ele julgava ser merecedor. A única que demonstrou não encontrar o menor interesse na sua pessoa.
“Eu mesmo ainda não sei bem o que vou fazer de Miss Fanny. Não a compreendo. Não poderia dizer o que ela pretendia ontem à noite. Que temperamento tem ela? Será solene? Será esquisita? Será afectada? Por que teria se retraído e olhado para mim com um ar tão sério? Mal pude arrancar-lhe algumas palavras. Nunca estive tanto tempo em companhia de uma jovem, procurando entretê-la, que fosse tão mal sucedido! Nunca encontrei alguém que me olhasse com tanta severidade! Preciso tirar o melhor partido disto. O olhar dela me diz: “Não hei-de gostar de si e estou decidida a não gostar”; e eu digo que ela gostará.”
Henry não podia acreditar que Fanny não lhe caísse nas graças quando as suas duas primas – Maria e Julia – perderam-se de amor por ele. Ele não podia conceber que isso fosse possível e afirmou para si próprio que havia de conquistar Fanny. Havia de empenhar toda a sua arte de lisonja e de sedução para cumprir a missão de juntar Fanny Price à sua lista de conquistas.
Afinal quem Fanny Price julgava que era para menosprezar Henry Crawford?
É certo e sabido que O Parque de Mansfield está longe de ser o supra-sumo dos romances de Jane Austen, e parece-me igualmente correcto afirmar o mesmo em relação à sua heroína - Fanny Price.
"Edmund e Fanny (...) precisamente pela sua subordinação aos códigos, condutas e expectativas dominantes"¹ não encontram grandes aplausos dos leitores. Mais uma vez, penso que não será errado dizer que, em certas alturas do romance, temos vontade de sacudir Fanny e implorar-lhe uma qualquer reacção, mínima que seja. No fundo, torcemos para que se rebele e creio que é por essa razão que muitas de nós se sente inconformada por ela nunca aceitar Henry Crawford - essa aceitação representaria a mudança que gostávamos que ela espelhasse. Mas Jane Austen escreve a sua história totalmente ao contrário, juntando Fanny e Edmund, quase (se não o for mesmo) como uma lição de moral.
" Em Mansfield Park explora a narrativa da formação e da educação de uma jovem no seio da família que recebe e adopta"¹, um pouco como Charlotte Bronte irá fazer com Jane Eyre, embora esta siga um caminho mais obscuro. Mas que chamei Jane Eyre à questão, importa referir que as parecenças com Mansfield Park são maiores. Tal como Fanny Price, Jane Eyre acaba por se subordinar aos valores e condutas expectáveis, todavia, tem um carácter mais decidido e embora se subordine, creio que nunca se subjuga. E podemos afirmar isto porque deambulamos nos seus pensamentos, tal como com Fanny, e aí conhecemos uma protagonista com uma mente viva, perspicaz, resoluta e activa; diferente de alguma passividade que inunda a nossa querida Fanny Price.
"em Mansfield Park é o movimento de outras personagens à volta de Fanny e a quase imobilidade desta que temos de identificar enquanto meios de organizar e dinamizar a acção e o enredo"¹, Jane Austen coloca Fanny Price quase no mesmo plano que o leitor, transformando-os em meros espectadores. Fanny Price serve quase como um fiktro que influencia o leitor nas suas opiniões sobre a acção que vai decorrendo. Fanny Price moraliza fortemente a nossa forma de ver as coisas, na sua maneira subtil e inocente, obriga-nos a distinguir o Bem do Mal, ou talvez seja melhor dizer, o correcto do incorrecto.
"Ao princípio é Mansfield Park; no fim é Mansfield Park. (...) A casa é o seu próprio centro"¹, este um aspecto fulcral. Mansfield Park é mais do que o local onde decorre a acção, funciona como um palco em que os actores entram e saem de cena, consoante os seus diálogos - o que é relevante se compararmos com a ideia maluca de encenar Lover's Vows. Em Mansfield Park, as personagens surgem e desaparecem, mas a casa é imutável e só quando saem dela é que as personagens se perdem, transitória ou irremediavelmente. Nem mesmo quando Fanny regressa a Portsmouth, Mansfield desaparece do romance. Está sempre presente nas longas cartas que lhe chegam repletas de amarguras, e Fanny retorna a casa - Mansfield Park - como que para "salvar a honra" da mansão depois das calamidades praticadas pela descendência Bertram. Com ela, Mansfield Park permanece imutável, defendendo os mesmos valores e a mesma moral. Tomemos este exemplo: "o final feliz possível neste romance é o da união matrimonial da heroína romanesca cujos códigos foram moldados à imagem e semelhança de quem os formou com o herói que os formou - o que não deixa de traduzir o fechamento"¹.
Mansfield Park é um romance complicado. Fanny Price não estabelece empatia imediata talvez porque gostássemos de ver nela uma irreverência, uma ruptura; e essa aproximação real com Fanny Price assusta-nos precisamente porque também representamos papéis sociais e também nos subordinamos a códigos sociais. Fanny Price não nos leva ao êxtase porque não rompe com os valores da sua sociedade.
Perante a história (e espero não estar a ir longe de mais), o facto de Fanny não se rebelar é, no fundo, uma atitude mais corajosa do que se o fizesse. É a força dos valores que vence o esvaziamento de consciência daqueles que a rodeiam.