Eu já assisti às duas versões de Mansfield Park: a versão de 1999 da Miramax e a versão de 2007 da ITV. Lembro-me que fiquei absolutamente decepcionada com ambas as versões. Lembro-me que vi os filmes no dia imediatamente após ter terminado de ler o livro. Foi um tipo de experiência mais ou menos assim: um livro fantástico e dois filmes que não lhe chegam aos pés. Não me incomoda que um filme somente se inspire num livro e não se prenda aos detalhes da acção. Aliás, há filmes que são melhores do que o livro nos quais se inspiram: o “Paciente Inglês” é exemplo disto. O que me incomoda é que, em ambas versões, há uma fuga da essência do livro. Então, para apreciar estes dois filmes eu tive de fazer um exercício de abstracção e esquecer um pouco o livro. Esquisito, não é? Só assim, eu consegui usufruir de ambos os filmes que, entretanto, já revi várias vezes.
A minha versão preferida é a de 1999, principalmente por causa do elenco. Adoro o facto de ter o James Purefoy a fazer de Tom Bertram – mas isso é um gosto pessoal – e também aprecio as duas actrizes que fizeram as irmãs Bertram. Mas há alguns aspectos em que a versão de 2007 é superior à versão de 1999. No que diz respeito a duas actuações: Blake Ritson (que faz de Edmund) e Hayley Atwell (que faz de Mary Crawford). Penso que Blake Ritson fez um Edmund mais convincente do que Johnny Lee Miller (em 1999); e o mesmo acontece com Hayley Atwell, que desempenha uma Mary Crawford bem mais interessante do que Embeth Davidtz (em 1999). No caso do personagem de Sir Thomas Bertram, penso que nenhum dos dois actores esteve à altura, para grande decepção minha, já que é um personagem que eu aprecio muito. Há outros aspectos, sobre os quais falarei quando referir o papel de Fanny em ambos os filmes.
Mansfield Park (1999) é uma versão cinematográfica - Miramax - do livro de Jane Austen. O argumento e a direcção pertencem a Patricia Rozema. Tem um bom leque de actores: Frances O'Connor, Jonny Lee Miller, Embeth Davidtz, Alessandro Nivola, Harold Pinter, Lindsay Duncan, Sheila Gish, James Purefoy, Hugh Bonneville, Justine Waddell, Victoria Hamilton; entre outros.
Apesar de seguir - em traços gerais - o enredo de Jane Austen, a opção do argumento deste filme é evidentemente centrado em dois focos: escravatura e feminismo.
"An agreeable and reasonably charming fusion of the titular novel and Ms. Austen's personal writings, Patricia Rozema's film aims to illuminate the social issues at the heart of Austen's narrative efforts, particularly those concerning the narrow options that women have faced throughout human history. In addition to the expected themes of class and feminine repression, it addresses the role of slavery in wealth acquisition, which provides a more substantial context for the social mores on display, as well as a parallel to the more metaphorical "enslavement" of women in a society where lineage and marriage were the unquestioned arbiters of every girl's fate." (retirado daqui)
Vemos o percurso de várias personagens femininas tais como Fanny Price, Mary Crawford e as irmãs Bertram serem desenhadas com uma desenvoltura um pouco distantes do que seriam no livro e da realidade da época mas, a meu ver, com o sentido de elevar o papel da mulher para além do que seria esperado. Também o tema da escravatura é destacado ao longo do filme. Sabemos que no livro a referência a este tema é bastante discreta, mas no filme torna-se num dos mecanismos do enredo; de tal forma que, são debatidos os argumentos de defesa e de acusação relativamente a este sistema. Mas não se fica por este aspecto linear. A dada altura, o próprio papel da mulher na sociedade e o seu destino de ter de contrair casamento é identificado como um tipo de escravatura. Isto gera no filme uma distinção porque cria na história um escape crítico que flui como reflexão da condição social e não somente uma acção centrada numa história de amor.
Sobre esta versão, eu gostaria de destacar a cena final do filme. Pessoalmente eu aprecio a opção de ser um narrador a fechar o filme, a relatar o destino de cada personagem, numa série de cenas que lembram o posar para uma foto. Chega a ser algo meio teatral o que, de certa forma, lembra o tom que existe no próprio livro.
Tom Bertram está longe de possuir o bom senso do irmão mais novo. Enquanto filho mais velho beneficiou sempre dessas prerrogativas e utilizou-as para proveito próprio, na maior das irresponsabilidades. Tom Bertram é, acima de tudo, um irresponsável.
"A freguesia seria para Edmund e, se o tio tivesse morrido uns anos mais cedo, tê-la-iam dado a algum amigo enquanto ele não chegasse à idade de receber ordens. Mas a extravagência de Tom tinha sido tão grande, antes deste acontecimento, que modificou os planos. O irmão mais novo tinha de sofrer as estroinices do mais velho. Havia outra freguesia para Edmund; e embora esse facto viesse suavizar as apreensões de consciência de Sir Thomas, não deixava, porém, de o considerar um acto de injustiça e tentou por todos os meios convencer disto o filho mais velho, na esperança de que produzisse melhor efeito do que tudo quanto até aí lhe tinha dito (...)
Tom escutava-o um tanto triste e envergonhado; mas, escapando-se logo que pôde, pensou: 1º - que não tinha metade das dívidas de alguns dos seus amigos; 2º - que o pai tinha exagerado o caso; e 3º - que o futuro padre, fosse ele qual fosse, morreria depressa.
Depois da morte de Mr. Norris, a freguesia foi para a posse do Dr. Grant, que veio residir para Mansfield. Era um homem robusto, de quarenta e cinco anos, e este facto deitou por terra os cálculos de Tom Bertram. Mas ainda arranjou consolação com a ideia de que ele era um homem muito gordo, com um aspecto apoplético e, portanto, cedo morreria"
Nas adaptações surge um pouco como o "filho rebelde", porém, não diria que essa característica seja enfatizada na obra. Na versão de 1999 há fortes discussões com Sir Thomas Bertram que aumentam essa ideia. Já no romance, vem mais ao de cima, não a sua rebeldia, mas a sua inconsciência, egoísmo, irresponsabilidade e desprendimento.
A relação com o pai está longe de ser a ideal. Enquanto leitores sentimos divergências entre ambos e uma certa desilusão por parte de Sir Thomas que, apesar de tudo, nunca desiste do filho, embora não o mostre claramente. Mais uma vez, dou os parabéns às adaptações como a de 1999 ou mesmo a de 2007 que aproveitam a doença de Tom para sanar todos os mal entendidos e nos mostram um Tom arrependido e um Sir Thomas amável. Como no romance esta parte da história é dada a conhecer ao leitor através de cartas escritas a Fanny, estamos, como ela, a imaginar toda a amargura da situação e nunca a vivê-la verdadeiramente, nas adaptações isso não acontece pois, tal como Fanny, somos transportados para a acção.
Já aqui escrevi e volto a repetir, na relação Tom/Sir Thomas, vem-me sempre à mente a história do filho pródigo e por isso, nada mais posso fazer do que perdoar a Tom todas as "estroinices".
"de Tom não tinha Fanny de que se queixar, a não ser quando se dava a brincadeiras que um rapaz de dezassete anos julga admíssiveis com uma rapariga de dez. Estava agora a entrar na vida, cheio de espírito, com todas as prerrogativas de um filho mais velho, que pensa que só nasceu para gozar e gastar dinheiro. A sua amabilidade para a primita ressentia-se disso: dava-lhe bonitas prendas, mas ria-se dela."
Hoje vou explorar a relação de Tom com Fanny. Tom Bertram aparece poucas vezes na obra e ainda menos em diálogos com Fanny o que não facilita a tarefa. Tom tem mais sete anos que a prima. Percebemos que não lhe dá grande importância, mas também não o podemos julgar severamente.
Ao contrário da obra, as adaptações de 1999 (especialmente) e a de 2007 colocam Fanny no centro da acção aquando da doença de Tom. Isto não sucede no romance, onde Fanny acompanha a doença do primo por cartas enviadas para Portsmouth. Sou favorável a essa alteração feita por ambas as adaptações porque, ao mesmo tempo que mostram a dedicação de Fanny, mostram também a gratidão de Tom para com a prima - e isso enternece-me "enormemente".
Uma cena hilariante, mas também exemplo perfeito do desprendimento de Tom e da indiferença deste para com a prima, é aquela que transcrevo abaixo. A adaptação de 1983 retrata perfeitamente esta situação e tal como no livro, somos levados a soltar umas quantas gargalhadas.
"Tom Bertram, que saíra, entrava outra vez na sala. E embora a honra de ser convidada fosse um pouco improvável, Fanny pensou que isso podia acontecer. Ele dirigiu-se, com efeito, para ela mas, em vez de a convidar para dançar, puxou uma cadeira e contou-lhe como estava o seu cavalo doente e a opinião do criado. Fanny viu logo que não ia dançar.
Depois disto, ele tirou um jornal da mesa e, percorrendo-o negligentemente com a vista disse:
- Se quiseres dançar, Fanny, vou dançar contigo.
Com um pouco mais de delicadeza, o convite foi rejeitado.
- Ainda bem - disse ele mais animado, pondo de parte o jornal - porque estou cansadíssimo. Só me admiro denque haja pessoas que possam aguentar tanto tempo a dançar. É preciso que estejam todos apaixonados para se distraírem com tal disparate. E parece que estão; se olhares, verás muitos pares de namorados; todos, excepto Yates e Mrs. Grant. E esta, aqui para nós, coitada, deve precisar tanto de um namorado como qualquer das outras. Deve levar uma vida aborrecidíssima com o marido.
Tom disse isto sem reparar que o Dr. Grant estava perto; ao aperceber-se disso, mudou tão de repente de assunto, que Fanny não pôde conter o riso.
- Que acontecimentos estranhos se passam na América, Dr. Grant! (...)
- Meu caro Tom - disse-lhe a tia - como não danças, penso que não te importarás de jogar uma partida connosco pois não? (...)
- Teria muito prazer - disse ele, levantando-se - mas agora vou dançar. Anda depressa Fanny (pegando-lhe na mão), não te demores, senão acaba a música. Fanny ficou satisfeita, mas era-lhe impossível sentir-se grata com o primo, que apenas resolvera dançar com ela para se libertar da maçada do jogo."
Não podemos afirmar que Tom seja um grande amigo de Fanny. No entanto, como já aqui disse, acho simpática a solução dada pelas adaptações em relação à prévia indiferença de Tom para com Fanny. Acredito que ele se redimiu e soube dar o devido valor à prima.